terça-feira, 22 de março de 2011

A sombra mágica

Quis acordá-la.

Dormia na sombra de um livro raro.

Como desencantar a palavra adormecida

Que desvenda os segredos do mundo? Da vida?

Gritei, sacudi, iluminei.

Acariciei levemente suas formas.

Ela espreguiçou, abriu os olhos e sorriu.

Achei que a encontrara!

Mas quando olhei, na sombra de um livro raro,

Outra palavra se aninhara e adormecera.

Quis acordá-la.

Márcia Sartorelo Carneiro

(Brincando com A Palavra Mágica, de Carlos Drummond de Andrade.)

terça-feira, 8 de março de 2011

O dia em que encontrei Leonardo

- Buon giorno! Scusate, signore, sono in ritardo!

Ele raspou a garganta e continuou a pintar.

Dirigi-me até meu cavalete, arranjei a tela em branco, abri minha caixa de tintas a óleo, dispus os pinceis no apoio e comecei a ordenar as cores na paleta.

Olhei ao redor. Estávamos os dois em seu atelier instalado numa das salas do palácio dos Médici, em Florença. O cheiro forte de tinta e terebintina me agradava tanto quanto as cortinas de brocado e seda que escorriam pelas paredes. Grandes janelas deixavam entrar a luz natural e ele, de calça de veludo e camisa comprida, desalinhada e suja, me olhava complacente.

- Signore da Vinci me ensine a pintar...como esparramar a profundidade na tela...

- A pintura é poesia que se vê e não se escuta e a poesia é uma pintura que se escuta e não se vê, disse solenemente.

Senti-me desfalecer de prazer com suas palavras. Ele parecia querer conversar, contar-me coisas que escrevia no seu Trattato della Pittura. Eu larguei os pinceis e ouvi atentamente.

-Estou escrevendo sobre pintura e poesia e posso lhe dizer que a pintura representa com mais verdade e certeza as obras da natureza. E, na minha opinião, é mais admirável a ciência que representa as obras da natureza (a pintura, evidentemente) que aquela que representa as obras do homem, que são as palavras, como é a poesia, e igualmente os que passam pela língua humana.

Estremeci de prazer e indignação.A força de suas palavras me comovia, mas eu, projeto de poeta (e psicanalista), não podia certamente concordar com sua admiração que privilegiava a pintura em detrimento das outras artes.

Mas ele continuou:

-A pintura é poesia muda e a poesia é pintura cega, e ambas estão imitando a natureza.

Achei meio contraditório. Ele não tinha dito que a poesia representa as obras do homem (a linguagem)? E essa agora... “imitando a natureza...”

Fiz cara de desentendida e resolvi fazer-lhe uma pergunta, durante a pausa que ele havia feito para retocar as mãos da virgem da Anunciação.

_ Mas, signore, tudo isto que o senhor anda inventado, não só no mundo da pintura, como na arquitetura e no desenho, mas , também suas invenções como o barco movido à roda de pá, o pára-quedas, o helicóptero, armas de fogo, metralhadoras, canhões, pontes suspensas e outras mais...tudo isto é resultado de sua genialidade ou o aperfeiçoamento de obras criadas por outras pessoas anteriormente?

Ele me olhou entre surpreendido e enfurecido. Respirou profundamente, lavou o pincel com terebintina e disse:

- Figlia mia, não sou um visionário no deserto como muitos acreditam.Estudo há anos os trabalhos de Francesco di Giorgio do qual ilustrei muitas de suas invenções (como o pára-quedas, helicóptero, canais e aquedutos) . Este, por sua vez tinha aperfeiçoado os conhecimentos de Mariano de Jacopo, detto il Taccola, que, entre 1430 e 1454, produziu uma série de desenhos espantosos em 2 volumes, De ingeneis e De machinis, cuja amplidão de conhecimentos é extraordinária.

Admirada com sua sabedoria e humildade quis sabe ainda mais:

- E como Leon Battista Alberti influenciou sua pintura? perguntei indiscreta.

Havia lido alguma coisa no Della pittura (1435) e reconhecido lá o pensamento de da Vinci.

- Realmente, o De Pictura nos deu a primeira exposição racional e sistemática das regras da perspectiva, que eu mesmo utilizo no meu trabalho e tratado sobre a pintura, disse da Vinci. Alberti foi grande gênio!!!

Passeou pelo atelier pensativo e, sorrindo, me disse:

- Mas Alberti não foi também tão original ! Assim como todos nós ele bebeu noutras fontes para fazer suas descobertas!

Outras fontes, pensei eu, com a boca seca de tanto aberta pela surpresa.

- Tudo o que “inventamos” já estava nos livros chineses, o NUNG SHU, produzido em massa em 1313 pelos chineses!

- Chineses?! gritei eu.

- Fale baixo, signora, pediu respeitosamente Leonardo.

E num tom de confidência continuou:

- Sim, em 1434, um grande navegador chinês Zheng He e sua frota chegaram a Florença e deixaram para trás uma enorme quantidade de conhecimentos que incluía mapas e documentos de astronomia, matemática, arte, arquitetura e impressão. Ele inclusive já havia dado a volta ao mundo e descoberto a América muito antes dos europeus. E foi daí que surgiram as grandes invenções do renascimento.

- Sant’Ana, a Virgem e o Menino!! precisei invocar o trio para me ajudar nesta hora de absoluto naufrágio psíquico.

Minhas idéias estavam todas fora do lugar, assim como os braços e pernas que se sacudiam sem direção. Olhei perplexa para Leonardo.

Ele pediu que não revelasse essas informações antes do ano de 2011. Não disse o motivo. Concordei solícita.

Para me acalmar sugeriu que iniciássemos nossa aula prática de pintura renascentista começando pelo ponto de fuga. E lá fui eu entre traços e cores aprendendo a “ pintura como poesia muda”.

Ao sair do atelier, já bem tarde da noite, vi, esboçado no espelho de vestíbulo, o misterioso e sfumato sorriso da Mona Lisa.

Compreendi que agora nós duas sabíamos os segredos de Leonardo.

domingo, 6 de março de 2011

Meu encontro com Tom Jobim

Chegou por e-mail o convite do Tom para comemorar o aniversário da Bossa Nova, em Santa Teresa, reduto da boemia belorizontina.

Dizia sobre a importância da data, o horário, local e acrescentava ao final: “chega de saudade. Não quero mais este negócio de você longe de mim!”

Bj. Tom.

Respondi imediatamente confirmando o encontro:

Ah.. "se todos fossem iguais a vc...” fizessem convites assim tão agradáveis para trilhar esta "estrada do sol" em Santa Teresa.. para curtir esta "inútil paisagem" à beira de um bar. Tomara que não esteja "chovendo na roseira" pois estas "águas de março “, teimam em cair em janeiro. Que bom que encontraremos as Ligias, Luizas e Terezas da praia. Não ligue pra esta "insensatez". É só pra dizer que estarei lá !!!

Bj.. Márcia.

E fui. Vesti-me de festa: a agitação tomou conta de mim. “È promessa de vida no meu coração!...” meu corpo todo vibrava... será que agora ele assumiria de verdade o amor? E aquele final do e-mail... chega de saudade!! Será?,

No caminho pensava comigo mesma: “ já conheço os passos desta estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor... já conheço as pedras do caminho...”

Ah, deixa pra lá, pensava também, no fim sobra sempre um retrato em branco e preto... de recordação!

Achei logo uma vaga para estacionar bem perto do Marilton’s e ao fazer a manobra escutei um assobio e no fundo alguém que dizia: “olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela que vem e que passa com seu doce balanço a caminho do bar...”

Era ele. Assentado me esperava com seu chapéu panamá, terno branco de linho, sorriso misterioso e o olhar...ah, o olhar! “Este seu olhar quando encontra o meu, fala de coisas que eu nem posso acreditar!” Misericórdia!! Assentei.

Ele me disse enlevado: “vem cá, me dê tua mão. O teu desejo é sempre o meu desejo. Vem, me exorciza. Dá-me tua boca e a rosa louca. Vem me dar um beijo...”

Me entreguei nos seus braços e lábios e me perdi de tanto amor.

Depois de agradecer ao garçom pelo chope que ele prontamente me trouxe, disse sorrindo:

-“É, só eu sei, quanto amor eu guardei, sem saber que era só pra você.”

-“Que maravilha viver”, ele suspirava, entre um gole e outro.’

A noite, as pessoas, as vozes, os risos, os chopes, os sons e as cores fizeram cenário para este encontro de palavras e gestos, de melodias e tons. Até que lá pelas tantas, escutei baixinho:

-“ É de manhã. Quero que você me dê a mão. Vamos sair pra ver o sol”...

Alguém esbarrou em mim e eu percebi que os garçons já recolhiam os copos, colocavam as cadeiras pra cima das mesas, limpavam o chão e o quarteto Bossa Nova guardava seus instrumentos depois do último acorde.

O dia realmente nascia sonolento e na mesa o jornal do dia estampava na primeira folha a fotografia da comemoração esplendorosa dos 50 anos da Bossa Nova, no Marilton’s, em Santa Teresa.

Retrato em branco e preto...pensei eu enquanto segurava o chapéu panamá branco de minhas lembranças.

Márcia Sartorelo Carneiro.