sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Bilhetes trocados

Carolina ouve um barulho na janela. Tateia o pombo e encontra um bilhete. Desenrola, sente o cheiro de café e avelã. Escaneia no Dosvox e escuta:

-para a moça dos olhos indecifráveis:

sou aquele que passa por sua janela as 16,47 e carrega um pombo no ombro.

Pressinto que, atrás de seus olhos de neblina, há imensa vontade de amar.

Venha, vamos conversar, estou no bar.

Colombo.

Carolina sentindo o coração acelerar, se lembra daquele perfume de avelã que passeia toda tarde por sua janela. Escreve e imprime outro bilhete:

-para Colombo, que carrega um pombo no ombro:

queria mesmo me arriscar a amar, voar, atravessar a serra do mar, saber rimar e no bar te encontrar.

Estou indo devagar, pode esperar.

Carolina.

Depois de despachado o bilhete pelo pombo correio, Carolina vestiu seu melhor vestido, pintou os lábios de cereja, amarrou os cabelos em coque, passou seu indefectível perfume, colocou seus olhos de vidro e saiu com sua bengala branca.

Queria ver no que ia dar poder arriscar.

Márcia Sartorelo Carneiro.

A conta não fecha!!

A conta dividida por três dava 16,66666.

Tentaram, em vão, arranjar moedas para o pagamento.

Decidiram dar, cada uma, uma nota de 20,00 e pediram o troco separado.

-O garçom que se vire!

Este, por sua vez, demorou ...demorou...

Resolveu levar o troco de 60 menos o valor da conta (50,00) sem dividir.

- Elas que se virem!

Elas, na impossibilidade, resolveram deixar o troco para os três garçons

que serviam no bar.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Festa de aniversário

-Afinal, o que é poesia?

-Poesia é o som que circula na vida como puro acontecimento.

-Simples assim?

-Escute com atenção: o que transborda é poesia.

Contornar os lábios com lápis batom.

Preencher a carne rosada com vermelho cereja.

Apertar os lábios para espalhar bem a cor.

Ouvir no final o barulho de beijo jogado ao vento.

Salto alto pisando o chão do mundo em acelerada cadência.

O vinho escorrendo caudaloso para dentro da taça.

O tilintar dos cristais.

A dona da festa de seus 60 anos arrastando alegre seus paetês brilhantes pelo salão.

O burburinho das vozes, dos gestos, dos olhares.

O ruído das lembranças da infância, da maternidade, da amizade.

O amor tamborilando sereno no balançar dos quadris pelo salão de dança.

O jantar servido ao som dos pratos e talheres como bateria de escola de samba.

O parabéns para você entoado em coro desencontrado.

O sopro ruidoso do apagar dos anos.

A cabeça zoando.

A chuva pingando miúda.

O barulho da chave na porta.

O farfalhar dos lençóis na cama.

O silêncio dos sonhos na noite quase dia.

- Então, a vida não é, ela mesma, poesia?

Márcia Sartorelo Carneiro.

-

Flor do baile - agora em imagem

Flor do baile
Eternizada na imagem.

sábado, 20 de novembro de 2010

Divagando

No colo,
me calo.
Mas o calo,
como dói!

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

No umbral da escrita

Era uma terça-feira, dia dois de novembro de 2010.Chuva caia fina na tarde cinza como lâmina de puro aço. Vesti-me rapidamente, peguei bolsa, baton, sombrinha e corri para o Conservatório, onde se realiza minha oficina de escrita, deleite das tardes de terça-feira.

Entrei meio esbaforida porque em pequeno atraso e quando abri a porta da sala me surpreendi porque não havia ninguém.

- Uai, o povo também está atrasado! Nem o Ronald chegou ainda!

Saí para beber água e, ao passar pelos corredores, escutei um som vindo do andar de cima. Orquestra de câmara, pensei. Tocava a marcha fúnebre, de Chopin. Linda, profunda, inquietante. Subi a escadaria e através da greta da porta observei uma menina (e seu desejo) regendo compenetrada a orquestra, gestos suaves e precisos como o voo de uma borboleta. Encantada me deixei escutar.

O barulho de uma porta batendo me chamou atenção e eu desci achando que meus colegas haviam chegado. Entrei na sala e encontrei a irresistível Rosalva, com seu provocante decote, de mãos dadas com o amolador de facas. Padre Nonato esconjurando e D. Maroca gritando de medo e prazer, com o cachorro Sansão se esfregando em suas pernas.

Surpresa, vi Alice chegando apressada, acompanhada do coelho branco, agora cinza, e do Chapeleiro Maluco. Corria da rainha de copas, que gritava:- cortem todos os voos! cortem todos os voos!

Mais adiante, Godofredo e Gertrudes, enrolados em suas toalhas bordadas de “G”, se acariciavam enquanto Joaquim, vindo diretamente de Guiricema para o encontro marcado, trazia na mala o livro vermelho e dourado dos contos inventados e decorados.

No fundo, Noel dedilhava a “Nossa separação”, acompanhado do Vadico, fazendo fundo musical para as conversas de Maria Tomba Homem e sua turma, que, irreverentes contavam causos do padre Natanael. Este por sua vez irrompeu magistralmente pelo recinto e praticou, ali mesmo sua transformação...”penteava os pelos, estes cresciam pelo corpo, dentes afiados de lobo despontavam, olhos sedentos espreitavam”.

-Lobisomem!!!Ouvi um grito de pavor e vi tia Tita, tecendo seu crochê nas meias de lã usadas no inverno, se arrastando em direção a D. Candinha, buscando a proteção do Ulisses que já mostrava os dentes e tomava posição de ataque ao lobisomem.

Corri também eu desesperada e atônita com a realização da palavra que se fazia ali naquela sala onde a renda da invenção se fiava.

Ao chegar à porta de saída, escutei um estrondo e vi as águas do rio São Francisco transbordando do Palácio das Artes, trazendo a bordo do Benjamim Guimarães a mãe d’água, uiaras, tutumarambás, serpentes do rio, carrancas e ribeirinhos. Malas, peixes, casas e árvores submersas nadavam pela av. Afonso Pena seguindo o curso do rio.Vi Ronaldo quase nauFragando na tentativa de salvar seus lindos vestidos bordados de rio.

Atravessei a nado o mar doce de águas barrentas e no café do Palácio das Artes encontrei finalmente a Flávia, Maria Eugênia e Sebastião, meus colegas das tardes escritas das terças-feiras. Juntos tomamos um café Milano coado nas águas do Velho Chico.

Irc, que nojo!

Saí do Palácio das Artes sorrindo. Fechei a porta. Ainda ouvi o último acorde da sonata nº2, 4º movimento(finale), de Chopin.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Finados

Lírio-branco para meu pai.
Rosa-vermelha para minha mãe.
Amor-perfeito para meu filho.
Sempre-viva a saudade.