Era uma terça-feira, dia dois de novembro de 2010.Chuva caia fina na tarde cinza como lâmina de puro aço. Vesti-me rapidamente, peguei bolsa, baton, sombrinha e corri para o Conservatório, onde se realiza minha oficina de escrita, deleite das tardes de terça-feira.
Entrei meio esbaforida porque em pequeno atraso e quando abri a porta da sala me surpreendi porque não havia ninguém.
- Uai, o povo também está atrasado! Nem o Ronald chegou ainda!
Saí para beber água e, ao passar pelos corredores, escutei um som vindo do andar de cima. Orquestra de câmara, pensei. Tocava a marcha fúnebre, de Chopin. Linda, profunda, inquietante. Subi a escadaria e através da greta da porta observei uma menina (e seu desejo) regendo compenetrada a orquestra, gestos suaves e precisos como o voo de uma borboleta. Encantada me deixei escutar.
O barulho de uma porta batendo me chamou atenção e eu desci achando que meus colegas haviam chegado. Entrei na sala e encontrei a irresistível Rosalva, com seu provocante decote, de mãos dadas com o amolador de facas. Padre Nonato esconjurando e D. Maroca gritando de medo e prazer, com o cachorro Sansão se esfregando em suas pernas.
Surpresa, vi Alice chegando apressada, acompanhada do coelho branco, agora cinza, e do Chapeleiro Maluco. Corria da rainha de copas, que gritava:- cortem todos os voos! cortem todos os voos!
Mais adiante, Godofredo e Gertrudes, enrolados em suas toalhas bordadas de “G”, se acariciavam enquanto Joaquim, vindo diretamente de Guiricema para o encontro marcado, trazia na mala o livro vermelho e dourado dos contos inventados e decorados.
No fundo, Noel dedilhava a “Nossa separação”, acompanhado do Vadico, fazendo fundo musical para as conversas de Maria Tomba Homem e sua turma, que, irreverentes contavam causos do padre Natanael. Este por sua vez irrompeu magistralmente pelo recinto e praticou, ali mesmo sua transformação...”penteava os pelos, estes cresciam pelo corpo, dentes afiados de lobo despontavam, olhos sedentos espreitavam”.
-Lobisomem!!!Ouvi um grito de pavor e vi tia Tita, tecendo seu crochê nas meias de lã usadas no inverno, se arrastando em direção a D. Candinha, buscando a proteção do Ulisses que já mostrava os dentes e tomava posição de ataque ao lobisomem.
Corri também eu desesperada e atônita com a realização da palavra que se fazia ali naquela sala onde a renda da invenção se fiava.
Ao chegar à porta de saída, escutei um estrondo e vi as águas do rio São Francisco transbordando do Palácio das Artes, trazendo a bordo do Benjamim Guimarães a mãe d’água, uiaras, tutumarambás, serpentes do rio, carrancas e ribeirinhos. Malas, peixes, casas e árvores submersas nadavam pela av. Afonso Pena seguindo o curso do rio.Vi Ronaldo quase nauFragando na tentativa de salvar seus lindos vestidos bordados de rio.
Atravessei a nado o mar doce de águas barrentas e no café do Palácio das Artes encontrei finalmente a Flávia, Maria Eugênia e Sebastião, meus colegas das tardes escritas das terças-feiras. Juntos tomamos um café Milano coado nas águas do Velho Chico.
Irc, que nojo!
Saí do Palácio das Artes sorrindo. Fechei a porta. Ainda ouvi o último acorde da sonata nº2, 4º movimento(finale), de Chopin.