Queria escrever uma poesia para ela mas, não sei por onde começar.
Quem sabe dos pés! É claro, ela não era outra coisa senão pés!
Não, pensando bem ela tinha um corpo, e até um coração que arrebentou para que ela pudesse morrer...Ou terá sido a cabeça?
Não, ela não tinha dessas dicotomias, apesar de ser um par!
O fato é que eu entrava nela e me fazia uma só com ela. O pedaço de terra que ela pisava era o meu pedaço, o nosso pedaço.
Ninguém nunca teve uma relação tão empática comigo (daquelas “ver com os olhos do outro”) como ela. Só que ela pisava com os meus pés!
E nós andávamos juntas e corríamos juntas. Ela se engasgava com a areia da praia e eu a banhava na água salgada do mar, ela se secava ao vento para novamente ser engolida pela areia.
Foi no mar que ela nasceu, ou melhor, que nasceu o meu amor por ela.
Quantas vezes eu a castiguei fazendo pisar aquelas pedras quentes de Santa Mônica e ela nem reclamava. Ela até me dava coragem para continuar a caminhada.
Ela também estava comigo quando beijei o Carlinhos pela primeira vez e me confessou depois que tinha visto tudo apesar de eu tê-la escondido debaixo da cadeira do cinema.
Depois ela começou a freqüentar as aulas comigo. Sempre muito discreta, não fazia barulho ao entrar na sala, mas todos a notavam. A Bia até me disse que ela lhe trazia uma certa tranqüilidade.Realmente ela era muito segura de si, tinha sempre os pés no chão, mas bem que ela gostava quando eu a fazia dar cambalhotas no ar.
Um dia ela conheceu o rio. Bebeu de sua água doce, tomou a espuma de suas quedas. E se afundou no verde das matas, se afogou na poeira do chão.
Deitou-se de frente para o sol e escancarou bem os olhos...mas ela era meio esquisita, pois, ao invés de se brozear ao sol,ela desbotou.
Nesta época os sinais de velhice começaram a aparecer, umas rugas ali, outras acolá, sua pele começou a ficar esbranquiçada, cheia de pintas. Aí eu desconfiei que ela estava com saudades do mar e resolvemos então fazer uma viagem de repouso.
E vocês não imaginam a felicidade dela quando viu o mar! Aquela sua boca larga, já gasta pelo tempo, se abriu num sorriso enorme...único...último.
Sacudi-a, tentei fechar-lhe um pouco a boca, remendá-la, mas nada.Ela não tinha mais vida.
Desesperada olhei-a bem nos olhos e ela num último esforço, sempre rindo aquele sorriso enorme, piscou e pediu-me que a enterrasse no mar.
E eu assim fiz.
E foi no mar que ela morreu, ou melhor, que nasceu esta saudade dela.
BH. 16- 11- 1976.