domingo, 9 de janeiro de 2011

Minha sandália

Queria escrever uma poesia para ela mas, não sei por onde começar.

Quem sabe dos pés! É claro, ela não era outra coisa senão pés!

Não, pensando bem ela tinha um corpo, e até um coração que arrebentou para que ela pudesse morrer...Ou terá sido a cabeça?

Não, ela não tinha dessas dicotomias, apesar de ser um par!

O fato é que eu entrava nela e me fazia uma só com ela. O pedaço de terra que ela pisava era o meu pedaço, o nosso pedaço.

Ninguém nunca teve uma relação tão empática comigo (daquelas “ver com os olhos do outro”) como ela. Só que ela pisava com os meus pés!

E nós andávamos juntas e corríamos juntas. Ela se engasgava com a areia da praia e eu a banhava na água salgada do mar, ela se secava ao vento para novamente ser engolida pela areia.

Foi no mar que ela nasceu, ou melhor, que nasceu o meu amor por ela.

Quantas vezes eu a castiguei fazendo pisar aquelas pedras quentes de Santa Mônica e ela nem reclamava. Ela até me dava coragem para continuar a caminhada.

Ela também estava comigo quando beijei o Carlinhos pela primeira vez e me confessou depois que tinha visto tudo apesar de eu tê-la escondido debaixo da cadeira do cinema.

Depois ela começou a freqüentar as aulas comigo. Sempre muito discreta, não fazia barulho ao entrar na sala, mas todos a notavam. A Bia até me disse que ela lhe trazia uma certa tranqüilidade.Realmente ela era muito segura de si, tinha sempre os pés no chão, mas bem que ela gostava quando eu a fazia dar cambalhotas no ar.

Um dia ela conheceu o rio. Bebeu de sua água doce, tomou a espuma de suas quedas. E se afundou no verde das matas, se afogou na poeira do chão.

Deitou-se de frente para o sol e escancarou bem os olhos...mas ela era meio esquisita, pois, ao invés de se brozear ao sol,ela desbotou.

Nesta época os sinais de velhice começaram a aparecer, umas rugas ali, outras acolá, sua pele começou a ficar esbranquiçada, cheia de pintas. Aí eu desconfiei que ela estava com saudades do mar e resolvemos então fazer uma viagem de repouso.

E vocês não imaginam a felicidade dela quando viu o mar! Aquela sua boca larga, já gasta pelo tempo, se abriu num sorriso enorme...único...último.

Sacudi-a, tentei fechar-lhe um pouco a boca, remendá-la, mas nada.Ela não tinha mais vida.

Desesperada olhei-a bem nos olhos e ela num último esforço, sempre rindo aquele sorriso enorme, piscou e pediu-me que a enterrasse no mar.

E eu assim fiz.

E foi no mar que ela morreu, ou melhor, que nasceu esta saudade dela.

BH. 16- 11- 1976.

3 comentários:

  1. Nunca antes na história desse país houve uma sandália tão longeva !!!
    E olha que eu estava lá...
    beijo. Bia

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  2. Pois eu, Marcia, perdi uma luva em Paris...nunca me vi tão triste e enluvada- enlutada por descobrir como sempre que nada se encaixa como uma luva...uma luva no frio, vale nada ou vale como vale a vida capenga, ou melhor maneta da gente...vale muito assim mesmo. Mas fiquei pensando: quem se agarraria assim a um mão? uma só..e vazia? Eu?

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  3. Que ótimo, a inspiração voltou! Sandália fantástica...morreu no mar... E olha que paradoxo legal, falando em morte da sandália, lembrei de uma música que gosto muito, acho que do Ary Barroso, cantada por Caetano Veloso: morena boa, que me faz penar, bota a sandália de prata e vem pro samba sambar.... Interrompi um pouquinho e fui ouvir a música, chama "isto aqui o que é", tenho no arquivo. Valeu,
    Bj,
    Paula

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