- Buon giorno! Scusate, signore, sono in ritardo!
Ele raspou a garganta e continuou a pintar.
Dirigi-me até meu cavalete, arranjei a tela em branco, abri minha caixa de tintas a óleo, dispus os pinceis no apoio e comecei a ordenar as cores na paleta.
Olhei ao redor. Estávamos os dois em seu atelier instalado numa das salas do palácio dos Médici, em Florença. O cheiro forte de tinta e terebintina me agradava tanto quanto as cortinas de brocado e seda que escorriam pelas paredes. Grandes janelas deixavam entrar a luz natural e ele, de calça de veludo e camisa comprida, desalinhada e suja, me olhava complacente.
- Signore da Vinci me ensine a pintar...como esparramar a profundidade na tela...
- A pintura é poesia que se vê e não se escuta e a poesia é uma pintura que se escuta e não se vê, disse solenemente.
Senti-me desfalecer de prazer com suas palavras. Ele parecia querer conversar, contar-me coisas que escrevia no seu Trattato della Pittura. Eu larguei os pinceis e ouvi atentamente.
-Estou escrevendo sobre pintura e poesia e posso lhe dizer que a pintura representa com mais verdade e certeza as obras da natureza. E, na minha opinião, é mais admirável a ciência que representa as obras da natureza (a pintura, evidentemente) que aquela que representa as obras do homem, que são as palavras, como é a poesia, e igualmente os que passam pela língua humana.
Estremeci de prazer e indignação.A força de suas palavras me comovia, mas eu, projeto de poeta (e psicanalista), não podia certamente concordar com sua admiração que privilegiava a pintura em detrimento das outras artes.
Mas ele continuou:
-A pintura é poesia muda e a poesia é pintura cega, e ambas estão imitando a natureza.
Achei meio contraditório. Ele não tinha dito que a poesia representa as obras do homem (a linguagem)? E essa agora... “imitando a natureza...”
Fiz cara de desentendida e resolvi fazer-lhe uma pergunta, durante a pausa que ele havia feito para retocar as mãos da virgem da Anunciação.
_ Mas, signore, tudo isto que o senhor anda inventado, não só no mundo da pintura, como na arquitetura e no desenho, mas , também suas invenções como o barco movido à roda de pá, o pára-quedas, o helicóptero, armas de fogo, metralhadoras, canhões, pontes suspensas e outras mais...tudo isto é resultado de sua genialidade ou o aperfeiçoamento de obras criadas por outras pessoas anteriormente?
Ele me olhou entre surpreendido e enfurecido. Respirou profundamente, lavou o pincel com terebintina e disse:
- Figlia mia, não sou um visionário no deserto como muitos acreditam.Estudo há anos os trabalhos de Francesco di Giorgio do qual ilustrei muitas de suas invenções (como o pára-quedas, helicóptero, canais e aquedutos) . Este, por sua vez tinha aperfeiçoado os conhecimentos de Mariano de Jacopo, detto il Taccola, que, entre 1430 e 1454, produziu uma série de desenhos espantosos em 2 volumes, De ingeneis e De machinis, cuja amplidão de conhecimentos é extraordinária.
Admirada com sua sabedoria e humildade quis sabe ainda mais:
- E como Leon Battista Alberti influenciou sua pintura? perguntei indiscreta.
Havia lido alguma coisa no Della pittura (1435) e reconhecido lá o pensamento de da Vinci.
- Realmente, o De Pictura nos deu a primeira exposição racional e sistemática das regras da perspectiva, que eu mesmo utilizo no meu trabalho e tratado sobre a pintura, disse da Vinci. Alberti foi grande gênio!!!
Passeou pelo atelier pensativo e, sorrindo, me disse:
- Mas Alberti não foi também tão original ! Assim como todos nós ele bebeu noutras fontes para fazer suas descobertas!
Outras fontes, pensei eu, com a boca seca de tanto aberta pela surpresa.
- Tudo o que “inventamos” já estava nos livros chineses, o NUNG SHU, produzido em massa em 1313 pelos chineses!
- Chineses?! gritei eu.
- Fale baixo, signora, pediu respeitosamente Leonardo.
E num tom de confidência continuou:
- Sim, em 1434, um grande navegador chinês Zheng He e sua frota chegaram a Florença e deixaram para trás uma enorme quantidade de conhecimentos que incluía mapas e documentos de astronomia, matemática, arte, arquitetura e impressão. Ele inclusive já havia dado a volta ao mundo e descoberto a América muito antes dos europeus. E foi daí que surgiram as grandes invenções do renascimento.
- Sant’Ana, a Virgem e o Menino!! precisei invocar o trio para me ajudar nesta hora de absoluto naufrágio psíquico.
Minhas idéias estavam todas fora do lugar, assim como os braços e pernas que se sacudiam sem direção. Olhei perplexa para Leonardo.
Ele pediu que não revelasse essas informações antes do ano de 2011. Não disse o motivo. Concordei solícita.
Para me acalmar sugeriu que iniciássemos nossa aula prática de pintura renascentista começando pelo ponto de fuga. E lá fui eu entre traços e cores aprendendo a “ pintura como poesia muda”.
Ao sair do atelier, já bem tarde da noite, vi, esboçado no espelho de vestíbulo, o misterioso e sfumato sorriso da Mona Lisa.
Compreendi que agora nós duas sabíamos os segredos de Leonardo.