Estou só neste bar. Espero por ele. Cheguei mais cedo só para observar.Trago comigo um caderno e caneta para anotar. Há muito tempo não escrevo, ando meio embotada, abotoada a blusa no peito, peito fechado.
Outro dia dizia que não se pode escrever quando se está muito para fora, muito aberta às circunstancias. Também não se pode escrever estando muito fechada . É preciso um nível de intimidade ótimo, um movimento dentro-fora.
Abro o caderno e vejo um escrito de Nietzsche: “para haver arte, para haver alguma contemplação estética, é indispensável uma precondição fisiológica: a embriaguez”.
Olho em torno, as paredes decoradas com gravuras e retratos de cantores conhecidos, as mesas quadradas de madeira de demolição, cadeiras pouco confortáveis, cheiro de cigarro proibido e cerveja ácida, lavanda e suor. Ruído de copos e vozes se misturam.
É certamente este a mais de energia, este excesso, chamado embriaguez, que nos ajuda a criar. Nietzsche tinha razão: esse a mais do sexo, do amor, do afeto, do desejo, da festa, do comprometimento, do acontecimento é que alimenta a criação estética.
Estou absorta em meus pensamentos quando o garçom se aproxima com o cardápio.
Peço uma cerveja pensando nas muitas que vou tomar para chegar a este estado fisiológico de embriaguez.
Tomo o primeiro e mais saboroso gole da cerveja gelada vendo a Ângela Maria entrar sorrateira, se esgueirando porta adentro. Posso adivinhar seus pensamentos: - “de noite, eu rondo a cidade, a te procurar, sem te encontrar. No meio de olhares, espio por todos os bares, você não está”.
Sussurro timidamente para ela:- “desiste, esta busca é inútil!”.
Ela sai apressada, para continuar sua ronda e terminar estampada na primeira edição: cena de sangue num bar da avenida São João.
- “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa, uma boa média que não seja requentada”.
Olho assustada e vejo Noel assentado num banquinho do balcão, a dedilhar um violão comendo um pão bem quente com manteiga à beça.
Ouço um celular tocando na mesa ao fundo. Alguém atende:- “Alô, to num bar chego já.
To aqui batendo um papo, tomando uma gelada. Hoje convidei uns amigos para beber, mas daqui a pouco só vai dar eu e você.”
Os amigos riem, fazem troça. Reconheço a zabumba do forró encostada num canto da parede.
Na mesa ao lado da minha uma morena de nome Terezinha se apresenta e é convidada a assentar.Conversa com um rapaz louro de alhos azuis, ainda desconhecido. Parece que conta sua historia, enumera seus parceiros e suas desilusões.
- “O segundo me chegou , como quem chega do bar, trouxe um litro de aguardente, tão amarga de tragar”.
Ele entusiasmado também quer contar sua história e diz:- “quando vou de bar em bar viro a mesa, berro, bebo e brigo. Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz, me conhecem só pelo meu nome de menino- Jesus!”E cantarola laiá laiá..
Mais à frente, perto da janela, a doce Aurora (penso que assim se chama por ser clara e orvalhada) conversa com um homem vestido com seu terno mais bonito e diz:
-“você diz que é operário, sai em busca do salário para poder me sustentar, qual o quê!”.
No caminho da oficina há um bar em cada esquina pra você comemorar, sei lá o quê!”
Francisco batuca na caixinha de fósforos um samba antigo e com olhos marejados lhe pede perdão.
Olho de soslaio, para não parecer intrometida e só vejo os braços abertos de Aurora enlaçarem o corpo cansado do amado, com açúcar, com afeto.
Ai meu Deus! E o Carlos que não chega. Ficou de me ajudar as selecionar alguns contos meus para o concurso em Parati e até agora nada!
O garçom já traz outra cerveja. –Vou experimentar a de trigo agora, por favor.
Solitário e sem dupla, quase atrapalhando a passagem para o wc, Rick cantarola:
-“Garçom me traga outra garrafa de cerveja. Vou ficar sozinho nesta mesa. Eu quero beber e chorar por ela...”.
Um rapaz se aproxima da minha mesa. Bandana na cabeça, sorriso de moleque e me confidencia:
- “procuro amigos de bar, papos desconexos. Procuro um par. De novo o velho sexo, fedendo a vexames. Procuro alguém para amar!”
Sorrio desconsertada, ele se vira e encontra seu par.
Finalmente Carlos chega e junto com ele o cheiro forte de cebola e alho, tempero da carne de sol que havia pedido enquanto o esperava. Pede mais um copo e uma farofa de pequi para acompanhar. Abre meu caderno, agora cheio das anotações feitas no bar. Lê a frase de Nietzsche e diz: - vamos lá ver o que você fez com a sua embriaguez.
Márcia Sartorelo Carneiro