sábado, 30 de outubro de 2010

Flor do baile

Para D. Vera, a dona do baile

Para Beatriz, que me contou a estória

D. Vera é mineira, costureira e quitandeira. Mora numa casinha com eiras e beiras ali para os lados do Santa Efigênia.Quando moça adorava dançar. Ia para os bailes no Elite com seu Sebastião e rodopiavam os mais românticos boleros. Agora sem marido e com aquela artrose nos joelhos ficou difícil para D. Vera se esbaldar nos salões.

Outro dia, quando já ia saindo de sua casa depois de provar o vestido que ela costurava para mim e me fartar com suas quitandas acompanhadas de delicioso café, ela me chamou para mostrar seu jardim.

Fiquei encantada! Uma parreira carregada de pequenos cachos se debruçava no avarandado e ao lado via-se um pequeno jardim. Beijos, margaridas, rosas, jasmins, manacás e prímulas se esparramavam pelo outubro primaveril. Ela me puxou pela mão para me mostrar uma pequena trepadeira que se esgueirava na noite úmida. E eu vi flores miúdas, brancas e singelas.Nunca as tinha visto e ela me disse:

- Chama-se flor do baile.

Achei diferente o nome e perguntei o porquê. Ela explicou:

- Essa flor tão delicada tem a duração de um baile, nasce e morre durante uma noite.

Fiquei tão estarrecida que a tomei nos braços e bailamos ali mesmo no jardim como duas crianças. E então ela me confidenciou:

- Essas noites de primavera em que baile nasce-morre na sua efêmera existência, eu sonho que estou dançando com meu amado. O sonho dura toda a noite e vai embora quando a flor do baile também vai. Mas este instante vale uma vida!

Aproximei-me de D. Vera e olhei em volta no jardim florido.

Os bailes, fulgurantes e prontos para viver só por uma noite, me tiraram para dançar e eu, de vestido florido, abraçada de flores bailei a primavera inteira-instante.

Márcia Sartorelo Carneiro.

Minha escrita

Escrevo ali
onde não penso,
do lugar onde vivo.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Canto

Recebi por e-mail.

Era imagem e música.

Não era poema escrito,

sofrido,

rimado.

Mas era poesia.

Uma fotografia:

pássaros pousados nos fios de luz da rua.

Presos na imagem,

sem canto.

Alguém olhou:

virou nota pousada na pauta.

Solto da imagem,

pelo canto.

Pássaros pousados na pauta

Permitem pensar partituras.

Fazer-se música,

E voar.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Chuva

O céu vestiu-se de cinza.

Acendeu raios que o trovão apagou.

Fez-se líquido

E desabou.

A terra escorreu seus caminhos.

Abriu-se em gozo de germinar sementes.

Fez-se bela

E desencantou.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Uma praça...muitas histórias

Era uma praça da minha Belo Horizonte. Simples, mas acolhedora. Traçado retangular com largos canteiros gramados e floridos. Ipês e palmeiras coloriam e sombreavam pensamentos. Hibiscos e manacás perfumavam os cantos da praça e dos passarinhos que lá faziam seus ninhos.

Encontrei-a pela primeira vez aos quinze anos quando vim morar em BH, na Floresta.

Tudo muito diferente daquele interior onde passei minha infância. Tudo grande, tudo longe, tanto carro, tanto ônibus, tanto desconhecido, tanto a desbravar. Essa pracinha foi um primeiro refúgio para essa vida nova que se anunciava. Servia de braço acolhedor e de impulso para novas aventuras.Viu nascerem meus primeiros amores.Mãos dadas e beijos furtivos passeavam entre seus jardins. Viu nascerem meus primeiros poemas escritos à sombra de um flamboyan.

Passaram-se os anos e agora são meus filhos que brincam ali. A Ju troca brinquedos com a menininha ruiva para experimentar sua boneca-bebê sendo empurrada num carrinho. O Pê aposta corrida de bicicleta com o gordinho e me encontra ofegante para enxugar o suor que escorre pelo seu rosto quente e rosado. Depois sobem juntos na árvore para testar seus músculos e meus nervos. Cenas ternas da infância e maternidade que a pracinha guardou.

Passaram-se os anos e agora ela amanhece cheia de gente caminhando apressada, ofegante, roupa esportiva, tênis, filtro solar. Algumas conversam animadamente enquanto caminham, outras vão ouvindo rádio no fone de ouvido, outras sós com seus pensamentos. Mas todas, sem exceção, parecem querer chegar a algum lugar apesar de não sair do lugar. E rodam, velhos e moços.As crianças continuam no centro brincando, as bicicletas incomodando.

Os bêbados e drogados também fazem pouso nesta praça. Também os lavadores de carro e tomadores de conta de carro. Contrastes se encontram e lá se cristalizam.

Debaixo de uma pérgula enfeitada de flamboyan sempre tem alguém morando ao ar livre. Dormindo num papelão e cobrindo com um cobertor peleja.

Mas este morador agora decide ocupar para sempre o território. Monta toda noite sua casa com paredes de papelão, teto de plástico para proteger da chuva e do lado de fora uma lata de lixo. Tem até um anexo onde dorme seu cachorrinho. De manhã, desmonta sua casa, dobra seus pertences, coloca-os nos bueiros próximos e vai trabalhar de lavador de carro.

Hoje, passei por lá quando voltava da zona eleitoral onde fui votar em presidente, governador e etc. O chão da pracinha estava coalhado de papel: santinho de candidato.

O morador da praça colava os restos da eleição num quadrado de papelão. Uma carinha junto da outra, um número debaixo do outro, saúde, educação, moradia...

Ia enfeitar sua casa.

Uma praça...muitas histórias.

Márcia Sartorelo Carneiro.