terça-feira, 24 de setembro de 2013

Margem escrita do rio

  
   
      Meu marido não falou palavra. Entrou naquela canoa, adentrou o rio feito jacaré deslizando em águas e partiu. Sim, partiu de ir embora, partiu de fazer corte. “Cê vai, ocê fica, você nunca volte”, gritei! Vai pedaço de mim que boia no oco do pau nas águas do rio...vai!


     Não foi por causa de mulher- outra. Não foi por desavença ou desamor. Mas foi! Me faz estranhezas, isso de não ter motivo. Me prende às margens olhando o vulto, alimentando o aguado.

     Ficamos.  Três filhos e eu. Quis que não falássemos mais nele. Mas pensávamos. E sem palavras não podia haver esquecimento. Um vulto de chapéu em canoa no rio abaixo, rio acima, rio afora é coisa de não se esquecer. É quadro que fixa ausência – presença na paisagem.

     As crianças em sobressaltos seguiram vidas. Só o mais novo é preso ao pai. Preso de querer ir com ele água adentro, preso de querer entender o silêncio do pai.

     Você nunca volte, eu tinha dito. Mais para parecer que era minha a última palavra e certa de que o desejo era dele. Ficar ali no desconhecido da vida, no sem margem, sem terra firme, sem porto de chegar. E eu ali, agarrada à terra barrenta da margem do rio, no porto seguro, no previsível da vida.

     Filho mais novo quis trocar de lugar com ele, mas hora certa deu de correr e se afastar. Virou homem depois deste falimento. Ganhou mundo carregando suas incompletudes.

     Agora, resto eu aqui, de costas para o rio, de costas para o vulto morante em águas, querendo, eu mesma, partir.

     Partir de ir embora. Partir de fazer corte, talho, escrita na terra da margem do rio.

Márcia Sartorelo Carneiro


passeando por- A terceira margem do rio, J. Guimarães Rosa.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

De vinhos e queijos



Ele era tinto- pele vermelha de descendência indígena. Encorpado, malhava diariamente na academia do bairro. De humor ácido e taninoso, às vezes apresentava-se com sabor doce no final. Chamava-se Vinho,. Malbec o sobrenome.

Ela, Lua, tinha uma aura branca , leitosa, aparentava a textura de um queijo.  Como toda mulher tinha fases – às vezes inteira, radiante, outras, tímida, em delicado fio de esperança crescente. Outras, ainda, silenciosa e desapercebida.

Lua era etérea, vivia no mundo da lua e morava na boca da noite.
Malbec tinha raízes terrenas mas às vezes ficava “alto”, parecia flutuar e cambaleava.

Vinho admirava sua pele alva e seu brilho próprio. Desejava encontrá-la pois pareciam formar um belo par.
 Lua , com ar superior, circulava desenvolta pelo céu, cumprindo sua rotina , mas , no fundo, esperava que, algum dia, alguém a tirasse daquela mesmice, e fantasiava: quem virá provar o queijo da lua? Ele, com sua flexibilidade quase líquida ( trabalhada nos alongamentos da academia de ginástica), se contorcia tentando arranjar um jeito de alcançá-la. E pensava: como me aproximar e provar o queijo da lua?

Construiu escadas, planejou foguetes, subiu árvores, voou pássaros, sonhou nuvens e nada.

Vinho cá...Lua lá...
Ele olhava...ela procurava...

Malbec, às vezes, se embriagava, e, nesta hora, quase podia tocá-la, de tão “alto” que chegava. Nestas horas , pareciam se encontrar no mundo da lua. Via-se, então, no canto da boca da noite, sorrateiro, escorrer um fio de vinho em mistura de queijo.

Mas ,logo, a sobriedade chegava e Malbec , sempre a contornar o impossível, perguntava: como me aproximar e provar o queijo da lua?
Um eco parecia responder: quem virá provar o queijo da lua?