domingo, 26 de outubro de 2025

 

De bichos e vozes

 

- tá escutando um ronco de porco?

- sim. Será de fome ou estresse?

- pode também ser namoro...

- está muito alto.. podem estar em perigo.

- mas não vejo nenhum porco...

- nem sinto aquele cheirinho caracteristico...

- será alguém dormindo no bambuzal?

- não parece. O som tá vindo de cima...

- mas porco não voa...nem gente...

- olha lá  em cima...pousados nos galhos uma família de pássaros..

- o som vem dali!!! Um pássaro- porco nunca vi!!

- olha no Google

- é biguá

- tira foto

- ah, voaram os pássaros – porcos!!

- será que Deus anda trocando a voz da bicharada?

- ou já há escolinha de línguas entre os animais...

 

Márcia Sartorelo

 

 

 

terça-feira, 14 de outubro de 2025

 

A montanha pulverizada

 

Acordo sobressaltada com um barulho estranho vindo da sala. Caminho devagarinho para não despertar o ser mineral que lá se instalou – uma pedra.

 Desconfiada a vasculho com o olhar.

 Imóvel ela reflete o pico do Cauê, o ferro e as milhões de lascas daquela “montanha pulverizada”, do poema de Drumond.

 Me aproximo e toco seu ser frio e duro.

 Nesse instante ela se desfaz em pó de ferro, pó de serra, pó das Minas Gerais.

Não era sonho, nem poesia. Era uma pedra de dura realidade.

Vale contar.

 

Márcia Sartorelo

domingo, 12 de outubro de 2025


O quarto dos netos

 

Entro no quarto que, hoje, chamo “o dos netos".

Já foi dos filhos ate que o silêncio ali se instalou.

Deu lugar a outras algazarras.

Entro no quarto dos netos.

Sem netos.

Ouço choro triste da boneca...ninguém vem me dar o leite

Trocar minha fralda, tirar minhas roupas, me enrolar em mantas.

Silêncio.

Ouço o ronco do motor do caminhão,

O galope dos cavalos,

O arrastar de malas prontas ora viagens imaginárias.

Silêncio.

Vejo cores e traços no papel,

Mundos se fazendo em massa de modelar,

Toquinhos montam castelos.

Silêncio.

Bolas rolam,

Bomboles rebolam solitarios,

Príncipes e princesas adormecem.

Silêncio.

Até a bruxa não assusta mais.

Só o lobo, num último suspiro grita:

-Cadê as crianças?

 Corre se não eu pego, abraço, beijo

De saudade.

 

Márcia Sartorelo Carneiro

2020

 

domingo, 5 de outubro de 2025

 Palavras e cores

 

Quando era criança, tinha uma brincadeira de dar cor às palavras. Liberdade, por exemplo, é verde; alegria é amarela; mamãe é azul e papai verde alface.

 

Sentávamos, Maria Amélia e eu, debaixo da parreira que cobria o longo corredor que margeava minha casa, e brincávamos.

 

Às vezes havia coincidência nas nossas opiniões, outras não.

 

Um dia, tentávamos descobrir a cor da palavra amizade.

 

 Será palavra azul, dizia eu? Amarela, dizia ela. E discutimos. Cada uma com sua opinião e argumentos.

 

 Quase brigamos em nossos desacordos, até que mamãe gritou lá da cozinha: - amizade é respeitar a palavra-cor do outro, meninas!!

 

E assim foi.

sábado, 4 de outubro de 2025

 Aqueles três bichos

Minha amiga tem um gato. Viaja da fazenda à casa da cidade enroscado no banco do carona. A maritaca, ela carrega no ombro esquerdo e o cachorro, refestelado no banco de trás.

Um dia, numa dessas viagens, o gato perguntou aos outros dois: - de quem será que nossa dona gosta mais?

O cachorro logo se levantou do banco de trás e, com cara de politicamente correto, disse: - não é dona é tutora! Claro que ela gosta mais de mim. Sou o mais inteligente, protetor e amigo!

Ora, disse a maritaca toda tagarela, é claro que sou eu! Nós conversamos muito, trocamos confidências, falamos mal dos outros...e bem também...fazemos barulho...cantamos....e...

O gato, ensimesmado, pensava solitário: - acho que sou eu o preferido. Ela até se preocupa com quem vou ficar depois que ela morrer...sou sua herança...seu legado...

A dona, seguia seu caminho. De nada sabia da língua dos bichos que não fosse o amor.

Amava, especialmente, em cada um deles, sua diferença.

 

Márcia Sartorelo

13/ 06/ 2023

 

 

 

 

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

 

PROSA DE VÓ

Ele é o mais novo. Chega alegre e logo pega as massinhas de modelar. Faz bolo, docinhos, arruma a festa, amarra pinhata e cantamos os parabéns. Todo dia ele comemora a vida. Todo dia é essa data querida.

É doce esse menino.

Depois o teatro entra em cena. Escondido atrás da cortina cria histórias e quando esta se abre, encena.

É doce esse menino

Outro dia jogávamos bingo. Eu entusiasmada cantava as pedras e fazia algazarra. Ele, cansado das minhas palhaçadas disse: vovó, agora vamos brincar de fazer silêncio...

É doce esse menino.

No Natal, ganhou de presente um quebra-cabeça.  Abriu entusiasmado, agradeceu e foi brincar de outra coisa. Passado um tempo, me procura e diz: vovó, depois quero um outro presentinho de você..

É doce esse menino!

Na festa de aniversário da irmã, encontro-o pegando um docinho na mesa antes da hora dos parabéns. Observo de longe, ele olha pros lados, espera talvez que alguém o repreenda ou o autorize. Grito para ele- corre Dante.  Ele sai correndo, comendo e rindo.

É doce esse menino.

E quando a amiga da mãe diz que vai levá-lo para a casa dela, ele reponde: vou não, já tenho dono!

É doce esse menino!

Quando a casa em construção estava quase pronta ele me diz ao telefone: tá quase pronta, vovó, já tem até vaso solitário!!

É doce esse menino!!

Márcia Sartorelo