quarta-feira, 1 de outubro de 2025

 

PROSA DE VÓ

Ele é o mais novo. Chega alegre e logo pega as massinhas de modelar. Faz bolo, docinhos, arruma a festa, amarra pinhata e cantamos os parabéns. Todo dia ele comemora a vida. Todo dia é essa data querida.

É doce esse menino.

Depois o teatro entra em cena. Escondido atrás da cortina cria histórias e quando esta se abre, encena.

É doce esse menino

Outro dia jogávamos bingo. Eu entusiasmada cantava as pedras e fazia algazarra. Ele, cansado das minhas palhaçadas disse: vovó, agora vamos brincar de fazer silêncio...

É doce esse menino.

No Natal, ganhou de presente um quebra-cabeça.  Abriu entusiasmado, agradeceu e foi brincar de outra coisa. Passado um tempo, me procura e diz: vovó, depois quero um outro presentinho de você..

É doce esse menino!

Na festa de aniversário da irmã, encontro-o pegando um docinho na mesa antes da hora dos parabéns. Observo de longe, ele olha pros lados, espera talvez que alguém o repreenda ou o autorize. Grito para ele- corre Dante.  Ele sai correndo, comendo e rindo.

É doce esse menino.

E quando a amiga da mãe diz que vai levá-lo para a casa dela, ele reponde: vou não, já tenho dono!

É doce esse menino!

Quando a casa em construção estava quase pronta ele me diz ao telefone: tá quase pronta, vovó, já tem até vaso solitário!!

É doce esse menino!!

Márcia Sartorelo

terça-feira, 30 de setembro de 2025

 Olhares

 

-Vamos nadar, vovó?

Era um convite que ele sempre me fazia. Gostávamos de nadar juntos, apostar corrida de crawl e de costas.

Nos degraus da escada, ele me observava tirar o vestido que revelava o maiô novo de oncinha.

- Nossa, vó, você está uma pelanca só!!

Ele me viu. Na sua espontaneidade de criança ele me viu. E me disse o que viu.

Mergulhei tentando me esconder de mim mesma porque ele já tinha me visto. Era inevitável.

Vontade tive, de ficar no fundo das águas e afogar aquela oncinha pelancuda. Precisava respirar. Tomei um impulso e respirei.

A chuva caiu de repente e ele correu para casa. Achei ótimo porque não o vendo, não me via.

Enrolei- me na toalha e entrei.

Esta chuva caiu em boa hora, pensei. Na varanda da casa, observando a chuva, toda coberta pela toalha, só os braços livres para abraçar o neto que se aninhou no meu colo, ouvi:

- Vó, adoro pegar essa pelanca do seu braço....

Meu olhar felino riscou o ar feito raio.

 

Márcia Sartorelo

25/10/2023


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

 

Gavetas abertas


A neta vem passar o fim de semana com ela. Geladeira abastecida com potes de sorvete e armários lotados das “porcarias” que ela mais gosta- balas, bombons, biscoitos. Tinha dito para a mãe dias antes: - estou com uma saudade de comer umas porcarias na casa da vovó!

E assim ficou combinado.

Chega toda animada com aquele abraço de quebrar costelas e, depois de se fartar com as gostosuras, se dirige àquele quartinho onde ficam as coisas esquecidas da casa.

- Vó, estou aqui no quartinho das coisas mortas!

Das gavetas da cômoda tira os óculos de grau do bisavô, a camisa do atlético do tio que não conheceu, os rolinhos de cabelo desbotados da bisavó...e veste. No espelho se recria.

-Olha vovó, achei uma coisa viva, grita.

A avó corre pro quartinho achando que era barata ou traça nas velhas gavetas.

Nas mãos da menina uma concha.

- Escuta o barulho do mar, vovó!

Abraçadas revezam a concha no ouvido. Enquanto escutam o som uma lágrima salgada se fez mar no encontro das duas.

Onde tem criança a vida acontece, pensa a avó com ternura.

Marcia Sartorelo

domingo, 28 de setembro de 2025

 

Coisas de boneca

 

Ela tinha a barriga carcomida. Os fios de algodão e fibra tinham sido arrancados n’alguma brincadeira mais violenta. Os braços estavam pintados de esmalte vermelho e os pés encardidos de terra. O rostinho até que estava sorridente com aquele tufo loiro de cabelinho pendurado na cabeça.

-Vovó, costura a barriga dela pra mim?

Linha e agulha na mão, fios trançados e barriga costurada.

Olhando para a caixa de costura encontro um retalho e invento fazer um vestidinho pra ela, coitada, tão pelada e agora com essa cicatriz cortando o ventre macio.

Chegam as crianças e a babá que prontamente se compromete a fazer o vestidinho dizendo ter feito curso de corte e costura.

Olhamos atentos, a tesoura rompendo o pano e as mãos hábeis trançando linha e agulha.

Vestido pronto, as crianças brincam com a boneca agora revivida e toda chique. Empurram no carrinho, dão comidinha, caminha pra dormir...

À noite, chega a mãe do trabalho para buscar as crianças e a babá.

De repente, ouço uma tagarelice vinda do quarto. Aproximo o ouvido “ah você assustou!?”...Ela fala! A boneca está falando!!

A babá arregala seus negros olhos e dispara para a porta. Recolhe pelo caminho as crianças, calça-lhes os sapatos, pega as mochilas e já está no corredor chamando, aflita, o elevador.

_ Mas mãe, essa boneca não fala, nunca falou! A outra é que falava tanto que tiramos o dispositivo de fala dela e jogamos fora! Credo! Que medo!

E a boneca tagarelava toda prosa com sua barriga costurada e seu vestidinho novo!

Saíram todos apavorados, não sem antes dizer para eu atirá-la fora. Coitada!

As crianças arrastadas sem nada entender!!

Vou tomar banho, comer algo e entro no quarto das crianças. Ouço a boneca dizer “te amo mamãe. Me dá um beijinho. Fico comovida. Procuro o dispositivo para desligar e não acho.

Vou escovar os dentes. Entro novamente no quarto e ouço “te amo mamãe. Me dá um beijinho”. Não resisto. Dou o beijo e digo: agora é hora de dormir. Boa noite.

Saio do quarto e fecho a porta. Ainda ouço “te amo mam...                 

Vou dormir. Não sem antes ouvir de minha filha apavorada ao telefone: joga ela fora, mãe!!

Na manhã seguinte, feriado, arrumo a bolsa para um passeio com amigos. Entro no quarto e ouço- “me leva pra passear”...

Tiro-lhe o vestido apressadamente. Rasgo a barriga e encontro o dispositivo ...Desligo.

Silêncio.             

 

 

 

 

Márcia Sartorelo Carneiro

Agosto de 2017

sábado, 27 de setembro de 2025

 

Cena I

 

Abro a janela

Uma paisagem no incômodo de meus olhos

Casinha de lona preta

Vida quase escondida

Quase nua

Espalhada pela calçada

Aproximo o binóculo

Devasso a pobreza

Afasto a repulsa

Vejo o cachorro que entra e sai da lona preta

Dá voltas

Fareja inseguranças

Faz a ronda

Pombos circulam migalhas

O homem sai, amassa latinhas

A mulher sai, sacode panos

O homem entra, a mulher entra

Ajusto o foco

O cachorro late para mim

Recuo.  Fecho a cortina.


Cena 2

Ouço choro de criança

A mãe empurra um naco de pão

“upa neguinho começando a andar...”

O olhar do menino me interroga

Que lhe podem ensinar?

Amassar latinhas feito o pai?

Fumar uma pedra de crack feito a mãe?

Nenhum rei para lhe visitar

Só estrelas de graça a olhar

São libertos, sem norte

Acorrentados à própria sorte

Os olhinhos negros insistem

Recuo. Fecho a cortina.

 

Marcia Sartorelo

17/102022

 

 

 

                                                                     

terça-feira, 23 de setembro de 2025

 

ARRUMADEIRA

 

 

Toca a campainha em desespero. Porta aberta, entra meio ressabiada. Vai direto para o quarto e já começa a arrumação.

Abre as caixas e espana tudo para o chão. Às vezes escolhe um ou dois objetos e os dispõe despretensiosamente em outro cômodo.

Os livros da estante, simetricamente enfileirados, depois de abertos, folheados e investigados, também são varridos de seus lugares direto para o chão. Aquele em que o lobo mau aparece tem suas páginas esfregadas e torcidas com violência.

As bonecas, ah, as bonecas! Estas, de assentadas ou deitadas na cama ou na casinha de papelão, depois de ninadas, despidas e nomeadas as partes, se ajeitam em poses extravagantes.

Perfuma a casa com as bisnagas de creme ou potes de hidratante que, depois de devidamente abertos com a ajuda dos poucos dentes, são esvaziados num êxtase nunca visto...às vezes degustados com frenesi.

Na sala, dispõe a banqueta do piano na horizontal ou, às vezes, de pernas para cima.

O vaso ao lado, deve ficar tombado, displicentemente, com algumas manchas de terra pelo chão.

A cortina, depois de servir de esconderijo, ganha desenhos de mãos e dedos que interrompem sua monotonia beje.

As almofadas das poltronas são arremessadas ao solo em poses diversas, às vezes empoleiradas umas nas outras, servindo de escada para alcançar algum objeto fora de lugar.

Na ponta dos pés, braços esticados, limpa a mesa pondo tudo abaixo.

Depois de arrumada a casa, procura, no meio de toda essa organização, a avó, o bu e a naninha – está na hora do soninho porque ninguém é de ferro. Ufa!!

 

Márcia Sartorelo

 

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

 

Alumbramento

Eram doze. Deitados na caminha improvisada, sob a luz da lâmpada que os aquecia e, sob os olhares curiosos e vigilantes para que o termômetro se mantivesse nos 37,5°c, esperavam protegidos e ignoravam seu destino.

Vestidos com belas armaduras arredondadas, de puro cálcio, se escondiam indefesos.

Eram vigiados, festejados e cobiçados por todos que passavam pelo berçário onde aguardavam.

No dia previsto, seis olhinhos iluminavam a caminha; já nem precisavam da lâmpada, o brilho dos olhares era suficiente. E um barulhinho se ouviu. Logo outro e mais outro.... armaduras se rompiam, seres de penas molhadas e bico afiados surgiam fazendo algazarra...piu, piu, piu.

Olhos iluminados e sorridentes, as crianças viram, pela primeira vez, nascer a vida, em toda sua beleza e força.

Foi puro alumbramento!!

Márcia Sartorelo

14/03/2023