terça-feira, 24 de agosto de 2010

Sonho

Eu estava em Amsterdã no ano de 2001. Fui visitar a casa onde Rembrandt havia morado. Muita emoção me cercava ali.Eu admirava as obras deste pintor holandês do séc. XVII.Havia feito um curso sobre a arte e pintura holandesa barroca.Tudo o que queria era estar ali entre os brocados, os tecidos, o claro-escuro, o dourado, as sutilezas e delicadezas das obras de Rembrandt.Queria ver sua casa, sua cama, seu atelier, as escadas onde havia pisado, os objetos que havia tocado, as intimidades que havia compartilhado. E ali estava eu como puro sonho.

Entrei na casa estilo sobrado holandês e, logo no hall, parei estupefata diante da cena! Havia uma mesa-gaveta com tampo de vidro e dentro um prato, uma caneca e uma colher dispostos displicentemente dentro da gaveta. Meu olhar deslizou para a parede e, logo acima, os mesmos objetos - prato, caneca e colher - pertenciam a um quadro pintado e pendurado acima. Mesmas cores, mesma textura, mesma ocupação de espaço, mesma displicência, mesma singeleza agora em duas dimensões.

A duplicidade daquela cena, a pureza, a simplicidade me encontraram num tal estado de comoção que comecei a tremer, a chorar, a me extasiar diante daquilo que me devolveu à minha própria infância e seus objetos. Objetos de minhas refeições em família, objetos de minhas brincadeiras com minhas bonecas. Dar de comer a elas, fazer comidinha, picar o mato e misturar o barro, acender o fogo de mentirinha, arrumar a mesa, a boneca no colo, o prazer da sopa quentinha e saborosa, os braços de minha mãe. Objetos capturados do naufrágio daquele navio onde viajavam minhas melhores lembranças. Objetos já enferrujados e carcomidos, mas resgatados em sua plena emoção.

E me assustei quando alguém me tocou a face e disse:

-Você está bem?O que aconteceu?

Eu acordei como de um sonho.Me refiz rapidamente, e disse:

- Menina, não entendi nada! Foi pura emoção!

Márcia Sartorelo Carneiro.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O branco, o pérola e o azul

O professor pediu que descrevêssemos uma foto que nos apresentou.

-Para treinarmos as nuances e particularidades da descrição na literatura, disse.

A mim coube uma fotografia intitulada Iemanjá - lia-se atrás do retângulo 40 por 30 de papel colorido. Quando recebi o meu logo pensei que não era por acaso. Ela tinha me escolhido! Só eu, como filha de Iemanjá, poderia retratar com palavras as características e emoções deste orixá africano.

Tomando o retângulo em minhas mãos logo escrevi o título: o branco, o pérola e o azul. E descrevi o que via...Meninas vestidas de fino branco e longos vestidos seguram o véu translúcido que desce dos ombros de Iemanjá. Esta, com olhar lânguido e de um azul profundo comanda altiva sua corte de adoradores.Trazem flores e orações, devoção e fervor.Caminham pelas areias da praia molhando a barra da saia. De costas para a água salgada do mar, uns nos olham com serenidade e outros distraídos para o mar. O rapaz também de branco olha devoto para o céu.

Mas era pouco o que via e eram muitas as imagens que me visitavam de minhas histórias com Iemanjá. Passo então à narrativa, pois narrar é contar, dizia o professor.

Estava na praia em Arraial da Ajuda quando um dito vidente me disse, depois de lhe ter pagado 20,00 reais de honorários, que eu era filha de Iemanjá – a rainha do mar. Fiquei a pensar como será que ele descobriu isto? Será por que estava vestida de azul e branco?Ou será que me viu benzer com a água salgada pedindo proteção a Iemanjá antes de entrar com sofreguidão no mar?Ou será que num relance já me percebeu voluntariosa, forte, caridosa, ingênua, vaidosa, temperamental, impetuosa e dominadora com os arquétipos dos filhos de Iemanjá? A resposta nunca saberei, porque intuição não tem explicação.Contentei-me em reafirmar minha filiação e se já me considerava filha dela, agora tinha quase a certidão de nascimento registrada pelo vidente, evidentemente, ou será que não mente?

Assim, quando quis parar de fumar depois de alguns anos de prazeroso vício, me preparei para jogar o maço de cigarros para ela na passagem do ano de 1996, na beira da praia, em Cabo Frio, antes do foguetório que dava início ao novo ano. Aviso que o isqueiro eu não joguei e por isto me eximo de qualquer responsabilidade sobre as mortes de animais marinhos comedores destas porcarias plásticas que são jogadas no mar. Apreensiva, mas crente nos poderes de Iemanjá pedi que ela levasse os cigarros e junto com eles minha vontade de fumar. Não durou uma semana o poder de Iemanjá.Voltei a fumar. Ano seguinte o mesmo ritual e na semana seguinte ela devolveu o maço embrulhado em fita e depositado na areia. Voltei a a fumar.Somente no terceiro ano de minha insistência ela atendeu minhas preces e, como disse um amigo meu, resolveu fumar os maços que lhe joguei me deixando livre do vício. Salve Iemanjá!

Um dia, era dois de fevereiro, eu estava em Salvador, na Bahia. Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, outro nome de Iemanjá. Todos os baianos e turistas se enfeitavam para a festa no Rio Vermelho, local de onde sai a procissão dos navegantes em direção ao alto mar levando as oferendas para a rainha do mar. Cheiro de alfazema, rosas brancas e vermelhas, braceletes, pulseiras, colares, manjar branco, bolo de arroz e peixe, fitas e velas e gente...Muita gente enfileirada para depositar suas oferendas nos grandes cestos e arcos que saem ao cair da tarde rumo ao infinito. E fé, contrição, pedidos, agradecimentos, emoção. Eu estava lá, três horas na fila, o sol queimando a pele, com minhas três rosas brancas nas mãos, um ardor no peito, uma alegria de participar da fé daquele povo, escutando as histórias dos milagres e dos feitos de nossa senhora mãe do mar.

Meu amigo tinha ido embora pro hotel. Como pode uma pessoa tão esclarecia, intelectual, estudada, se prestar a um desatino deste, dizia. Ele, comunista e ateu convicto, repetia indignado que a religião era o ópio do povo. Mas eu só saí de lá depois de cumprir minha obrigação de fé e prazer.Rezei e depositei minhas flores num cesto que seria levado para ela. À tardinha, do terraço do hotel vi os barcos entrando no mar carregados da fé dos devotos de Iemanjá. Meu amigo sorriu porque era bonita a paisagem.

Recentemente fiquei conhecendo outro orixá, também das águas, mas esta, das águas doces- Oxum. E alguém me disse:- acho que você é mais filha de Oxum.

Iemanjá é mulher-mãe, do tipo que acolhe seus filhos, cuida, protege e abençoa.

Oxum é mulher, mas é mulher-fêmea, do tipo sensual, sedutora, maliciosa, enigmática, feminina.

E lá fui eu pensando em como ela teria percebido isto? Será que me viu vestindo azul e dourado na última festa? Será que me viu bebendo as águas doces do rio Guamá, no Pará, e me benzendo? Será que me escutou dizendo baixinho...O que é mesmo uma mulher? Será...?

Márcia Sartorelo Carneiro.

domingo, 1 de agosto de 2010

Guarda este poema!

Gostaria de tê-lo feito! Foi o que disse quando acabei de ler o poema de Antonio Cícero. Transcrevo abaixo: Guardar Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é estar acordado por ela, isto é, estar ou ser por ela. Por isto melhor se guarda o voo de um pássaro Do que um pássaro sem voos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo: Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: Guarde o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema: Por guardar-se o que se quer guardar. Algumas vezes digo isto quando sinto que leio algo que já estava quase pronto em mim e encontro assim prontinho fora de mim. Ou também quando algo responde a uma pergunta que venho há tempos me fazendo. Resposta germinando e, enfim... Resposta encontrada! Foi este o caso do poema citado. Em italiano, olhar – verbo- se traduz como guardare: io guardo...eu olho.. Para mim parecia tão contraditório que o guardar pudesse ser olhar! Guardar é esconder, tirar das vistas, não expor, não exibir, não mostrar!E essa agora? Guardar silêncio, guardar segredo, guardar-se, guarda sexo, guarda vidas... No carnaval mulheres e homens usam só um guarda sexo.Será para olhar ou para tapar? Nas confidências se guardam segredos. Será para esconder ou para revelar? Nas solenidades se guarda silêncio. Será para velar ou para desvelar? Menina você deve se guardar!!Será que para se preservar ou para se deixar mostrar? E o guarda vidas postado na sua cabine frente ao mar? Será para olhar a vida passar? Ou para proteger a vida de passar? Ora, guarda! Vida, sim!