sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O branco, o pérola e o azul

O professor pediu que descrevêssemos uma foto que nos apresentou.

-Para treinarmos as nuances e particularidades da descrição na literatura, disse.

A mim coube uma fotografia intitulada Iemanjá - lia-se atrás do retângulo 40 por 30 de papel colorido. Quando recebi o meu logo pensei que não era por acaso. Ela tinha me escolhido! Só eu, como filha de Iemanjá, poderia retratar com palavras as características e emoções deste orixá africano.

Tomando o retângulo em minhas mãos logo escrevi o título: o branco, o pérola e o azul. E descrevi o que via...Meninas vestidas de fino branco e longos vestidos seguram o véu translúcido que desce dos ombros de Iemanjá. Esta, com olhar lânguido e de um azul profundo comanda altiva sua corte de adoradores.Trazem flores e orações, devoção e fervor.Caminham pelas areias da praia molhando a barra da saia. De costas para a água salgada do mar, uns nos olham com serenidade e outros distraídos para o mar. O rapaz também de branco olha devoto para o céu.

Mas era pouco o que via e eram muitas as imagens que me visitavam de minhas histórias com Iemanjá. Passo então à narrativa, pois narrar é contar, dizia o professor.

Estava na praia em Arraial da Ajuda quando um dito vidente me disse, depois de lhe ter pagado 20,00 reais de honorários, que eu era filha de Iemanjá – a rainha do mar. Fiquei a pensar como será que ele descobriu isto? Será por que estava vestida de azul e branco?Ou será que me viu benzer com a água salgada pedindo proteção a Iemanjá antes de entrar com sofreguidão no mar?Ou será que num relance já me percebeu voluntariosa, forte, caridosa, ingênua, vaidosa, temperamental, impetuosa e dominadora com os arquétipos dos filhos de Iemanjá? A resposta nunca saberei, porque intuição não tem explicação.Contentei-me em reafirmar minha filiação e se já me considerava filha dela, agora tinha quase a certidão de nascimento registrada pelo vidente, evidentemente, ou será que não mente?

Assim, quando quis parar de fumar depois de alguns anos de prazeroso vício, me preparei para jogar o maço de cigarros para ela na passagem do ano de 1996, na beira da praia, em Cabo Frio, antes do foguetório que dava início ao novo ano. Aviso que o isqueiro eu não joguei e por isto me eximo de qualquer responsabilidade sobre as mortes de animais marinhos comedores destas porcarias plásticas que são jogadas no mar. Apreensiva, mas crente nos poderes de Iemanjá pedi que ela levasse os cigarros e junto com eles minha vontade de fumar. Não durou uma semana o poder de Iemanjá.Voltei a fumar. Ano seguinte o mesmo ritual e na semana seguinte ela devolveu o maço embrulhado em fita e depositado na areia. Voltei a a fumar.Somente no terceiro ano de minha insistência ela atendeu minhas preces e, como disse um amigo meu, resolveu fumar os maços que lhe joguei me deixando livre do vício. Salve Iemanjá!

Um dia, era dois de fevereiro, eu estava em Salvador, na Bahia. Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, outro nome de Iemanjá. Todos os baianos e turistas se enfeitavam para a festa no Rio Vermelho, local de onde sai a procissão dos navegantes em direção ao alto mar levando as oferendas para a rainha do mar. Cheiro de alfazema, rosas brancas e vermelhas, braceletes, pulseiras, colares, manjar branco, bolo de arroz e peixe, fitas e velas e gente...Muita gente enfileirada para depositar suas oferendas nos grandes cestos e arcos que saem ao cair da tarde rumo ao infinito. E fé, contrição, pedidos, agradecimentos, emoção. Eu estava lá, três horas na fila, o sol queimando a pele, com minhas três rosas brancas nas mãos, um ardor no peito, uma alegria de participar da fé daquele povo, escutando as histórias dos milagres e dos feitos de nossa senhora mãe do mar.

Meu amigo tinha ido embora pro hotel. Como pode uma pessoa tão esclarecia, intelectual, estudada, se prestar a um desatino deste, dizia. Ele, comunista e ateu convicto, repetia indignado que a religião era o ópio do povo. Mas eu só saí de lá depois de cumprir minha obrigação de fé e prazer.Rezei e depositei minhas flores num cesto que seria levado para ela. À tardinha, do terraço do hotel vi os barcos entrando no mar carregados da fé dos devotos de Iemanjá. Meu amigo sorriu porque era bonita a paisagem.

Recentemente fiquei conhecendo outro orixá, também das águas, mas esta, das águas doces- Oxum. E alguém me disse:- acho que você é mais filha de Oxum.

Iemanjá é mulher-mãe, do tipo que acolhe seus filhos, cuida, protege e abençoa.

Oxum é mulher, mas é mulher-fêmea, do tipo sensual, sedutora, maliciosa, enigmática, feminina.

E lá fui eu pensando em como ela teria percebido isto? Será que me viu vestindo azul e dourado na última festa? Será que me viu bebendo as águas doces do rio Guamá, no Pará, e me benzendo? Será que me escutou dizendo baixinho...O que é mesmo uma mulher? Será...?

Márcia Sartorelo Carneiro.

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