Era uma noite em Lourmarin.Saímos do Chambre d’hôte onde havíamos nos hospedado, depois de uma busca insana pelos hotéis da redondeza, muito caros ou sem conforto, buscando um restaurante na cidade. Estávamos com muita fome depois de um dia de peregrinação pelos belos campos de lavanda do Luberon-Provence - Gordes, Vaucluse, Roussilon e tantas outras pequenas vilas do sul da França.
Mesa posta. Vinho, água, pães, azeite...para começar.Os pedidos feitos: canard, rouge, boeuf.
- Os turistas não vão beber? Interroga ao garçom nossa vizinha de mesa, uma senhora de seus 70 anos, alta, esguia, farta cabeleira branca, olhos espertos e sorriso acolhedor.
O garçom havia se esquecido de abrir o vinho e este foi um bom pretexto para que a senhora, ávida por companhia ou, talvez curiosa com aqueles turistas encapotados no início da primavera francesa, logo puxasse conversa. Ela também observou o fato de estarmos com nossos grossos “manteau” enquanto os demais em manga de camisa. Ao ver compreendido o seu francês e, reciprocamente, compreender o meu, na sua mistura com o italiano e português, percebeu que já tinha companhia para o seu jantar.
A conversa se estendeu noite adentro, até que me lembrei de ter lido antes da viagem que era naquela cidade que havia morado Albert Camus, filósofo e escritor argelino francês, meu preferido nos tempos da faculdade e da Aliança Francesa.
- Sim, me disse ela, ele está enterrado aqui. Quiseram transferi-lo para o Pantheon, em Paris, onde estão os célebres franceses, mas a família não autorizou.
Camus...pensava eu, quero vê-lo, quero lê-lo, quero voltar àquele tempo dos meus 20 anos. Quero perguntar pelo absurdo do mundo, pelo sentido da vida, pelas escolhas que não fiz, pela liberdade e responsabilidade, pela existência e pela revolta!!
Engoli rapidamente a sobremesa, me desvencilhei de meus companheiros de viagem e arrastando a velha pela mão pedi que me conduzisse ao túmulo de Camus.
Precisava resgatar parte de minha vida vivida com ele.Suas idéias, suas emoções, suas angústias que eram também as minhas. Depois de 35 anos o que havia restado disto?
E a velha não se recusou. Animou-se ela também; não que me parecesse filósofa de grandes idéias, mas porque simplesmente vivia e se emocionava, e seguia os acontecimentos, o inesperado.E era muito inusitado que uma turista brasileira a arrastasse àquela hora da noite para o cemitério da cidade, para ver Camus. Certamente, era inusitado!
E lá estava Albert Camus- 1913-1960. Morreu jovem. Um túmulo simples de mármore branco com detalhes preto e cinza. Algumas alfazemas num vaso exalavam seu perfume na noite enluarada da primavera provençal. O mistral soprava e entoava um canto agudo compondo o tom ameaçador do lugar.
Não tínhamos medo.
Buscava em mim as perguntas que lhe faria. Silêncio.
Buscava em mim as emoções que sentiria. E chorei....
Chorei um choro manso e denso.
Camus havia morrido. Meus vinte anos haviam morrido. Enterrados os dois numa cidadezinha da Provence.
Olhei assustada procurando a velha. Ela me esperava serena, à distância, e me acenou com doçura. Partimos.
Márcia Sartorelo Carneiro.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns!Muito lindo!
ResponderExcluirBeijo.Bia
Super, Márcia, mexe com a gente; demais.
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