...“Te encontro com certeza talvez num tempo da delicadeza.
Onde não diremos nada.
Apenas seguirei como encantado ao lado teu .”
- ... num tempo da delicadeza não diremos nada!... Como então escrever um poema sobre delicadeza...Um poema sem palavras...Um poema delicado?
Era isto o que D. Candinha pensava enquanto escutava o Chico Buarque cantar “Todo sentimento”. Como toda mulher de múltiplos afazeres, também nesta hora, escaldava o polvilho, metia-lhe o queijo, enrolava as bolinhas e punha o pão de queijo pra assar no forno à lenha de sua cozinha na mineira cidade de Sabará.
D. Candinha era poeta nas horas plenas do dia. Enchia-lhes de poesia, as ruas com seus flamboyans, os jardins com suas margaridas, as janelas com suas histórias vistas, a cozinha com seus cheiros de queijo tostado!!!! Meu Deus, o pão de queijo vai queimar!! E lá corria ela a retirar os tabuleiros do forno, os dedos sapecando no pano úmido, o calor adentrando os poros, o perfume do café quentinho, as crianças se achegando, limpando as mãos na roupa, segurando pão de queijo na barra da camisa, assoprando pra esfriar..
....”Te encontro com certeza talvez num tempo da delicadeza...” pensava ela quando Seu João adentrou pela casa trazendo os peixes que havia pescado logo ali no Rio das Velhas. Era isto o que dizia e todos desconfiavam da conversa de pescador. D. Candinha vendo os peixes reluzentes lembrou-se de Adélia Prado e seu poema : Casamento
.”.. ajudo a escamar, abrir, retalhar salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha.
O silêncio de quando nos vimos pela primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo.
Os peixes na travessa, vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
Somos noivo e noiva.”
-Vou te ajudar a limpar, disse olhando pro João e pensando nas coisas prateadas que espocam.
...” Onde não diremos nada” continuou a pensar enquanto tirava o pó do beiral da janela. Via, sob o mormaço quente da tarde, a Tereza passar carregando lata d água na cabeça. Via também o Tião correndo atrás arranjando a lata na sua bicicleta e Tereza se ajeitando na garupa. Água esquentando no fogão. O banho tomado. Coisas prateadas espocam...
...”Apenas seguirei como encantado ao lado teu”.. olhou pro tapete da sala. Lá estava Ulisses, seu cão labrador, olhando pra ela, sacudindo o rabo, pedindo carinho, oferecendo presença. Sentou-se no sofá e ele aninhou-se a seus pés, cabeça erguida de modo a não lhe perder de vista. Tomou a caneta e o papel que a inspiração chegava. E procurou as palavras para falar da delicadeza. Buscou as situações, as experiências, as constatações, os sentimentos, as rimas, as metáforas, os estudos sobre este tema tão delicado, ela dizia. E escreveu uma poesia. Deixou-a na mesinha ao lado enquanto ia acender a luz que já fazia quase noite.Um vento forte jogou o papel no chão. Ulisses mastigou o papel e com ele as palavras.Vendo-o saborear o mau feito D. Candinha, sorrindo, disse:
- Até parece que ele já sabia que num tempo da delicadeza não diremos nada!
Márcia Sartorelo Carneiro.
Desse tempo de delicadeza...quase não consigo dizer nada! Mas, queria dizer-lhe da sua...delicadeza. A escrita desliza entre cozinhas e pães de queijo, pescadores, mentiras e a verdade do amor que se apresenta no...Ulisses.Puro signo. A ele se pode dizer qualquer coisa, pois ele não responde. Para ele, D Candinha é ela mesma, sem a mentira que as palavras envolvem. Beleza de texto!
ResponderExcluirQue encanto,Márcia!
ResponderExcluirHistória linda e delicada.
Beijo. Bia
Ulisses também adorou ... Saboreou o conto com ainda mais apetite do que teve para a poesia ...
ResponderExcluirBjim