terça-feira, 28 de setembro de 2010

Crochê, textos e sonhos.

Maria tece crochê.

Tece há muitos anos textos.

Tece há quase sessenta anos sonhos.

O crochê aprendeu com uma velha tia de seu pai- tia Tita – assim a chamavam. Senhora de seus quase noventa anos arrastava uma cadeira para se movimentar desde que havia fraturado o fêmur numa queda. Formavam uma só pessoa: ela, a cadeira e o crochê. Vivia com agulha e linha trançada no pescoço, o coque prendendo longos cabelos brancos e para ensinar usava a delicadeza.

Maria aos 11 anos tecia palas de camisolas, blusinhas, biquinhos e toalhinhas para enfeitar seus sonhos adolescentes, para contornar os furos abertos e sem respostas, para amarrar os traços dos caminhos feitos, para tramar histórias da vida a ser vivida.

Os textos aprendeu com D. Terezinha no grupo escolar. Primeiro o desenho das letras, o encontro combinado entre elas, as palavras mágicas, o texto tecido tramado. Depois disto tudo, o texto nascido, parece até que já escrito noutro lugar e presentificado com prazer.Quase como um filho, criança, criação.

A ambos – o crochê e os textos - faz com as mãos, ora um, ora outro, nunca os dois ao mesmo tempo.

Os sonhos, como não são aprendidos, ela é que se apreende neles. São eles que a tecem, a tramam, a escrevem. Contam as histórias dela.

Só neles ela pode ao mesmo tempo tecer crochê, textos e desejos.

Maria tem sonhado muito.

Quer comprar uma passagem de navio, mas não entende a língua falada pelo bilheteiro.

Quer viajar de avião, atravessar o mar, mas apresentam-lhe uma lista de exigências para a viagem numa língua que ela não compreende.

Quer comprar um doce de amendoim. A velha vendedora fala coisas incompreensíveis.

Ela quer continuar querendo.

Maria quebrou o bibelô da mãe. Ela quer aparecer aí entre o bibelô e a mãe. Passar de bibelô a mulher tecelã. Crocheteira, escritora, sonhadora.

Maria continua trabalhando...tecendo...sendo...

Márcia Sartorelo Carneiro.

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