domingo, 24 de abril de 2011

Na beira da estrada





          Caminho distraída pela estradinha de terra arenosa. Serpenteia o rio cipó ao longe, armando o bote para despencar rochedo abaixo em forma de cachoeira. As flores sempre vivas enfeitam as margens sombreadas por ipês, quaresmeiras, canelas-de ema. Cavaleiros passam apressados em direção à cachoeira da Farofa levantando poeira e lançando montículos pastosos e fedorentos a demarcar o percurso.

         Assento-me numa pedra, beira de um curso d’água para refrescar os pés e a garganta. Aproveito para comer uma barrinha de cereal - energia com pouca caloria.

         Uma cor azul borboleteia pelos caminhos e pousa num objeto meio escondido, meio aparecido à beira da estrada. Vou ver do que se trata.
-         Um baú abandonado!... ou terá sido colocado aí propositalmente?... Alguém pode voltar para buscá-lo...não mexa nas coisas dos outros...mas dá uma vontade...

Não tem fechadura. Abro.

Muitos papeis. Palavras soltas: cerimonial, buffet, segurança, música, decoração, convites, daminhas, pajem, cabelo, maquiagem, vestido de mãe de noiva.

Vou retirando um a um. Lanço-os num canto da estrada.

          Resta um: – casamento. No verso, noivo e noiva.
 Fecho o baú. Deixo guardada esta última palavra a germinar outras letras.

          A borboleta azuleia meu caminho. Sigo.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Gaveta do tempo



       O puxador era de metal dourado, em forma de U, rebuscado e torneado, um pouco gasto pelo manuseio e pelo tempo. Tomei-o com prazer e receio e, num movimento suave, abri a gaveta da cômoda.   Saltou-me aos olhos um pequeno cartão, com um bebê estampado, que dizia:
Participo o nascimento de Márcia, em Além Paraíba, no dia 29 –01- 1954.
J. C. C. e família.
        Olhei aqueles guardados com olhos de recém nascida: curiosa, novidadeira. Num embrulho amarelado, muitas fotografias: a alegria do primeiro ano, a introspecção da primeira comunhão, a altivez do discurso de formatura na quarta série, as férias com a família, a algazarra dos amigos na praça em V.R.B., a ilusão da fantasia no carnaval, a expectativa no baile de debutante. Registros de infância e adolescência. Saudades de mim.
         Avancei as mãos gaveta adentro e encontrei um pedaço de crochê, tecido com fina linha mercê-crochê, n.0. Renda de minhas invenções a contornar vazios deixados por minhas perguntas adolescentes.Dobrei o trabalho trançado e prossegui.
          Uma partitura se fez ouvir – Primeira carícia, noturno, de C. de Crescenzo. Meus de dos a acariciaram enquanto ouvi-me tocar ao piano treinando as ligaduras de expressão, o uso dos pedais, o pianíssimo.
         Levantei as mãos e vi que estavam sujas de tinta. O tubo fechado e esquecido havia entornado seu conteúdo nos papeis colorindo-os como singelas aquarelas.
Limpei as mãos no pedaço de papel de seda, não sem antes admirar o desenho que serviu e modelo para os bordados das toalhas de mesa de meu enxoval.
          No fundo da gaveta, “Monsieur Vincent embrasse sa femme”, é uma frase da página solta do meu livro de francês do ginásio.Quero estar em Paris, no alto da torre Eiffel.
          Dentro de um envelope pardo um xerox do Decameron, de Bocage, junto com a Ellenika, dos meus estudos de grego arcaico. Outras línguas e a mesma falta de palavras.
           Encontrei num canto da gaveta, meio amarrotado, o texto que escrevi na Oficina de Criação literária.- Meu encontro com Tom Jobim. Sorrio. Cheiro de terra molhada a germinar sementes. Fechei a gaveta.
No movimento, um pequeno recorte de jornal espirrou para fora. Recolhi e li: “Quando mais nada resistir que valha a pena de viver......
Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.”
Carlos Pena Filho.
Empurrei o papel gaveta adentro. Fechei os olhos e suspirei. Que venha o acaso.

Márcia Sartorelo Carneiro.
            .


domingo, 10 de abril de 2011

Gato



          Minha amiga tem um gato.Viaja da fazenda à casa da cidade enroscado no banco do carona. A maritaca ela carrega no ombro esquerdo e o cachorro refestelado no banco de trás.
Quem ouve falar fica pensando, e temendo, que o cachorro resolva pegar o gato, e este por sua vez a maritaca e...nem é bom pensar.
Mas eles obedecem ao combinado: cada um no seu pedaço e todos no coração de minha amiga.

          Um dia, conversando ao telefone, ela me disse:
-         Márcia estive matutando...quando eu morrer acho que vou deixar o Dodi de herança para você.
-         Dodi, o gato?
-         É, ele mesmo. Com seu espírito independente você combina mais com gatos...são mais livres, menos apegados ao dono.

          Eu pensei cá comigo: nisto ela tem razão. Não gosto mesmo de cachorro me seguindo para todo lado, obedecendo, abanando rabo, com aquela cara de pidão. O gato é misterioso, arisco, quase rebelde.         .

          Aceitei a herança, na esperança de que ela não morra tão cedo. De preferência depois de mim.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

José



José era carpinteiro.Fazia móveis, caibros e cumeeiras de telhado.

Nos domingos de folga pegava os restos da madeira e esculpia imagens. As mãos calejadas do trabalho duro, com farpas e cortes a marcar a pele, surpreendentemente, pareciam acariciar a peça de imbuia. Os dedos deslizavam pela pele rugosa da madeira fazendo saltar os músculos e veias, formas e vestes de imagens religiosas.

Um dia resolveu fazer sua própria imagem. Mirou-se no espelho da sala, desenhou mentalmente seus traços mais marcantes, buscou a expressão mais santificada e pôs-se a trabalhar.Neste mesmo dia, sua Maria anunciou que estava grávida de um menino enviado por Deus.

José trabalhou com afinco, pois a família iria aumentar, mas nas horas ociosas continuava a lavrar sua imagem com devoção.

Maria tecia e José talhava.

Passaram-se os nove meses. O menino nasceu. O santo José estava pronto.

domingo, 3 de abril de 2011

Menino verão

Meu menino - minha lembrança.
Fotografia na estante.
Só durou um instante.
Só foi verão.
Quente, saliente, ardente.
Roubou goiaba, nadou no rio,
Pescou lambari, riu de repente.
Depois se foi.
Como estação.
Fez-se outono em meu coração.