sexta-feira, 15 de abril de 2011

Gaveta do tempo



       O puxador era de metal dourado, em forma de U, rebuscado e torneado, um pouco gasto pelo manuseio e pelo tempo. Tomei-o com prazer e receio e, num movimento suave, abri a gaveta da cômoda.   Saltou-me aos olhos um pequeno cartão, com um bebê estampado, que dizia:
Participo o nascimento de Márcia, em Além Paraíba, no dia 29 –01- 1954.
J. C. C. e família.
        Olhei aqueles guardados com olhos de recém nascida: curiosa, novidadeira. Num embrulho amarelado, muitas fotografias: a alegria do primeiro ano, a introspecção da primeira comunhão, a altivez do discurso de formatura na quarta série, as férias com a família, a algazarra dos amigos na praça em V.R.B., a ilusão da fantasia no carnaval, a expectativa no baile de debutante. Registros de infância e adolescência. Saudades de mim.
         Avancei as mãos gaveta adentro e encontrei um pedaço de crochê, tecido com fina linha mercê-crochê, n.0. Renda de minhas invenções a contornar vazios deixados por minhas perguntas adolescentes.Dobrei o trabalho trançado e prossegui.
          Uma partitura se fez ouvir – Primeira carícia, noturno, de C. de Crescenzo. Meus de dos a acariciaram enquanto ouvi-me tocar ao piano treinando as ligaduras de expressão, o uso dos pedais, o pianíssimo.
         Levantei as mãos e vi que estavam sujas de tinta. O tubo fechado e esquecido havia entornado seu conteúdo nos papeis colorindo-os como singelas aquarelas.
Limpei as mãos no pedaço de papel de seda, não sem antes admirar o desenho que serviu e modelo para os bordados das toalhas de mesa de meu enxoval.
          No fundo da gaveta, “Monsieur Vincent embrasse sa femme”, é uma frase da página solta do meu livro de francês do ginásio.Quero estar em Paris, no alto da torre Eiffel.
          Dentro de um envelope pardo um xerox do Decameron, de Bocage, junto com a Ellenika, dos meus estudos de grego arcaico. Outras línguas e a mesma falta de palavras.
           Encontrei num canto da gaveta, meio amarrotado, o texto que escrevi na Oficina de Criação literária.- Meu encontro com Tom Jobim. Sorrio. Cheiro de terra molhada a germinar sementes. Fechei a gaveta.
No movimento, um pequeno recorte de jornal espirrou para fora. Recolhi e li: “Quando mais nada resistir que valha a pena de viver......
Lembra-te que afinal te resta a vida
Com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório.”
Carlos Pena Filho.
Empurrei o papel gaveta adentro. Fechei os olhos e suspirei. Que venha o acaso.

Márcia Sartorelo Carneiro.
            .


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