quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Peras psicodélicas



Assento no banco da praça. Olho os passantes distraída. As maritacas conversam animadamente nas árvores. Os cães passeiam seus donos. Os manacás primaveram cores e perfumes.

Avisto duas senhoras, meia idade, que fazem sua caminhada matinal. Usam bermuda colada nas pernas finas e amplas blusas coloridas e estampadas cobrindo a parte superior do corpo gordo e banhudo. Lembram peras psicodélicas.

Caminham e conversam, arfam e avançam decididos passos no intuito de perder calorias. Observo de longe. Quando passam perto do banco onde me encontro ouço lasanhas e molhos, doces de manga talhada para aproveitar a fartura da época, e recomendações médicas sobre alfaces e melancias, caminhadas e academia. Fragmentos de conversas sobre netos , filhos e noras.  Escuto uma ponta de mágoa dirigida ao marido, desconfiança, traição, talvez... Aguço os ouvidos. Uma jovem secretária que se insinua ...nua...

 De repente o barulho da sirene do carro de polícia invade a praça. Estacionam e abordam as duas peras psicodélicas. Conversam, gesticulam, mostram documentos.

Meu Deus, o que aqueles policiais fazem nesta história?! Eles eram personagens de outro conto que estou escrevendo e aparecem assim, sem aviso, intimidando duas senhoras que,simplesmente, caminham sua boa reputação pela praça!

Aproximo da cena e chamo os policiais pelo nome- sargento Rodrigo, cabo Walerson! Parecem me ignorar. As senhoras amedrontadas perguntam sobre a acusação que têm contra elas. Chamo de novo pelo nome, grito, pego uma borracha para desmanchar, uma caneta pra riscar, aperto a tecla deletar. Ignoram-me fortemente.

Colocam as senhoras na viatura e arrancam cantando pneus. Estarrecida ouço a sirene desaparecer ao longe. Meus personagens não são mais meus!

No dia seguinte, no mesmo banco, abro o jornal e leio, no caderno policial, a manchete:

Policiais enciumados prendem peras psicodélicas sob acusação de roubo de palavras e da dedicação do escritor às suas próprias histórias.

E sob a fotografia das duas coloridas lia-se:

 De volta à liberdade e à praça as senhoras se comprometeram a levar sua vidinha medíocre sem desejo de participar de quaisquer histórias ou aventuras.


terça-feira, 5 de novembro de 2013

Encontro com Cora Coralina



Feito Cora encontrei-me mulher

Na montanha escalada da vida.

De revés, não removi pedras,

Apenas convivi perdas.

O tempo ensinou.

A mão semeou.

E o olhar viu flores

Se esgueirando

Entre pedras.

 Perdas

E dores.
                                                                                        

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Turandot




                                                    Ah, Turandot!
                                               O enigma do amor,
                                                    A tua dor!

sábado, 5 de outubro de 2013

Uma mulher


Estudava psicanálise com afinco. O tema preferido era o que se dizia das mulheres.

 Deitou-se no divã anos a fio. Teceu ares de seu ser mulher.

Até que escutou a frase : uma mulher não é uma mulher, se não tiver um bom vestido!

Estava resolvido! Largou a psicanálise, largou o divã .

Foi vista de loja em loja a procurar seu bom vestido!





terça-feira, 24 de setembro de 2013

Margem escrita do rio

  
   
      Meu marido não falou palavra. Entrou naquela canoa, adentrou o rio feito jacaré deslizando em águas e partiu. Sim, partiu de ir embora, partiu de fazer corte. “Cê vai, ocê fica, você nunca volte”, gritei! Vai pedaço de mim que boia no oco do pau nas águas do rio...vai!


     Não foi por causa de mulher- outra. Não foi por desavença ou desamor. Mas foi! Me faz estranhezas, isso de não ter motivo. Me prende às margens olhando o vulto, alimentando o aguado.

     Ficamos.  Três filhos e eu. Quis que não falássemos mais nele. Mas pensávamos. E sem palavras não podia haver esquecimento. Um vulto de chapéu em canoa no rio abaixo, rio acima, rio afora é coisa de não se esquecer. É quadro que fixa ausência – presença na paisagem.

     As crianças em sobressaltos seguiram vidas. Só o mais novo é preso ao pai. Preso de querer ir com ele água adentro, preso de querer entender o silêncio do pai.

     Você nunca volte, eu tinha dito. Mais para parecer que era minha a última palavra e certa de que o desejo era dele. Ficar ali no desconhecido da vida, no sem margem, sem terra firme, sem porto de chegar. E eu ali, agarrada à terra barrenta da margem do rio, no porto seguro, no previsível da vida.

     Filho mais novo quis trocar de lugar com ele, mas hora certa deu de correr e se afastar. Virou homem depois deste falimento. Ganhou mundo carregando suas incompletudes.

     Agora, resto eu aqui, de costas para o rio, de costas para o vulto morante em águas, querendo, eu mesma, partir.

     Partir de ir embora. Partir de fazer corte, talho, escrita na terra da margem do rio.

Márcia Sartorelo Carneiro


passeando por- A terceira margem do rio, J. Guimarães Rosa.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

De vinhos e queijos



Ele era tinto- pele vermelha de descendência indígena. Encorpado, malhava diariamente na academia do bairro. De humor ácido e taninoso, às vezes apresentava-se com sabor doce no final. Chamava-se Vinho,. Malbec o sobrenome.

Ela, Lua, tinha uma aura branca , leitosa, aparentava a textura de um queijo.  Como toda mulher tinha fases – às vezes inteira, radiante, outras, tímida, em delicado fio de esperança crescente. Outras, ainda, silenciosa e desapercebida.

Lua era etérea, vivia no mundo da lua e morava na boca da noite.
Malbec tinha raízes terrenas mas às vezes ficava “alto”, parecia flutuar e cambaleava.

Vinho admirava sua pele alva e seu brilho próprio. Desejava encontrá-la pois pareciam formar um belo par.
 Lua , com ar superior, circulava desenvolta pelo céu, cumprindo sua rotina , mas , no fundo, esperava que, algum dia, alguém a tirasse daquela mesmice, e fantasiava: quem virá provar o queijo da lua? Ele, com sua flexibilidade quase líquida ( trabalhada nos alongamentos da academia de ginástica), se contorcia tentando arranjar um jeito de alcançá-la. E pensava: como me aproximar e provar o queijo da lua?

Construiu escadas, planejou foguetes, subiu árvores, voou pássaros, sonhou nuvens e nada.

Vinho cá...Lua lá...
Ele olhava...ela procurava...

Malbec, às vezes, se embriagava, e, nesta hora, quase podia tocá-la, de tão “alto” que chegava. Nestas horas , pareciam se encontrar no mundo da lua. Via-se, então, no canto da boca da noite, sorrateiro, escorrer um fio de vinho em mistura de queijo.

Mas ,logo, a sobriedade chegava e Malbec , sempre a contornar o impossível, perguntava: como me aproximar e provar o queijo da lua?
Um eco parecia responder: quem virá provar o queijo da lua?


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Ipê



Há treze anos olho os ipês amarelos
que florescem neste mês
em que tu partiste.

Certa de que não voltas,
colho de tua ausência estas  flores
e um lamento triste.

domingo, 21 de julho de 2013

O menino é o pai do homem


O menino quando brinca,
faz peraltices,
desobedece,
é punido pelas teimosias,
empina pipa colorida no céu,
se arrisca nadando no rio,
se aventura na mata próxima,
enfim, quando vive,
cria o homem que será ao crescer!
O menino que morre cedo,
não pode ser o pai do homem.
Ficou  só menino.
Criou meninice.
Tudo que acontece ao menino faz viver o homem.
O menino que morre cedo,
confronta o homem com a finitude!


Márcia Sartorelo Carneiro.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Lamento II



Quisera eu, feito Rosa,

Estar só como os gatos e árvores. Não o só da solidão; mas o só da solistência.

Mudar sempre por não estar ainda terminada.

Ficar largo e profundo como o rio, sem pressa de chegar.

Desconfiar de muita coisa por quase nada saber.

Ficar encantada e não morrer.

Seguir veredas no grande sertão.

Apanhar silêncio dum sentimento.

Viver como descuido prosseguido.

Ter natureza de não caber em certeza nenhuma.

Acreditar que eu mesmo seja um conto contado por mim.

Mas ao rasgar-me e remendar-me, em questões de poesia,

Encontro só pétalas!


                                                                                                               

sábado, 25 de maio de 2013

Crônica de domingo



Pela manhã vesti-me de esportista e saí para uma caminhada no parque municipal. Tomar o sol da manhã, sacudir o esqueleto e absorver a vitamina D eram meus objetivos mais saudáveis – pulsão de vida!

Seguindo a balaustrada da Rua Sapucaí  leio um cartaz afixado num poste:  curso de escatologia – tempo do fim. Minha visão embaralhou, o poste perdeu sua ereção eterna e minha vertigem postural benigna me fez abraçar aquele falo em riste. Tentando me manter de pé, fiquei ali por alguns segundos até recuperar meu equilíbrio. Segui meu caminho pensando se deveria fazer o tal curso que se me apresentou assim como um reflexo no espelho. Esclareço, me vi chegando aos sessenta anos – em curso, o tempo do fim. Nova vertigem.

No parque municipal uma limusine do Funeral House anunciava que _ Aqui Jazz_ com Take Five e Babaya, patrocinado pelo Bosque da Esperança, Parque Renascer etc.
Brincadeira , pensei! Já havia esbarrado na escatologia e agora jaz, funeral, esperança, renascer! Cadeiras arrumadas, palco pronto,músicos tomando seus lugares.

Assentei. Puxei a cadeira para a sombra porque já estava cheia de vitamina D e precisava proteger  a pele do sol de depois das dez. Vi de longe alguns amigos acenando mas não me mexi. Queria ficar ali com aquela inominável sensação de fim.

Até que escutei os primeiros acordes do sax, até que escutei a voz aveludada da Babaya e o cio da terra me fecundou, colhi lágrimas e com elas o milagre da emoção. A música tomou conta de todos, que cantávamos, que dançávamos juntos e separados. Nem me lembrei mais das coisas finais que encontrei pelo caminho. No final de cada música, só o estalar das palmas, os gritos, confraternização, vida!  Ainda, no final de tudo, enquanto me agitava ao som de Sonho de Carnaval, olhei para a limusine do funeral e vi, refletida no espelho, uma silhueta rebolativa e alegre, parecida comigo. Batia palmas!

Agora,que a tarde chega, é só esperar a final do campeonato mineiro – outro final! Palmas para o Atlético!!!

Revendo o texto , à noite, depois de saborear uma pizza com minha família, fui assaltada por uma pergunta: - será que o curso de escatologia inclui o aprendizado de bater palmas?



Márcia Sartorelo Carneiro

sábado, 4 de maio de 2013

Lamento




Quisera eu, feito Barros,

“Alucinar palavras”

“Fazer delirar os verbos”

“Ser salvo por não me achar”

“Fotografar perfume”

“Morar meus abismos”

“Ter profundidades sobre o nada”

“Escutar a cor dos passarinhos”

“Retirar semelhanças de árvore comigo.”

Mas ao “lamber palavras”

Encontro apenas água e terra.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Palavras e coisas






Eu sou a pedra no meio do caminho!
Aquela que o poeta versou.
Vivo em bocas literatas.
Minha existência é metafórica.
 Muitos, vi voltarem desesperados seu caminho.
Outros,vi contornarem indecisos minhas arestas.
Tantos outros, vi paralisados diante do poder a mim atribuído.
Oh! Retinas fatigadas!
Queria mesmo ser pedra preciosa.
Destas que moram no colo das mulheres a emprestar-lhes seu brilho.
Ou perambulam pelos ares presas aos anéis em dedos móveis.
Ou adormecem nos furinhos das orelhas macias.
Mas eu sou a pedra no meio do caminho!
Não sou coisa dependurada, objeto de decoração, enfeite.
Sou palavra inventada, escritura forjada, acontecimento.
Melhor assim.
Nunca me esquecerei.
Eu sou a pedra no meio do caminho!





terça-feira, 9 de abril de 2013

Casa dos milagres



      No alto de uma falésia a beira mar, ergueu-se uma capela chamada de Nossa Senhora das Pedras. Era o ano de 1763, no litoral sul da Paraíba. Contam que um navio português quase naufragou naqueles mares e a capela foi construída, em agradecimento, pelos sobreviventes.

      Hoje o nome mudou para Nossa Senhora da Penha e uma igreja maior foi construída, ao lado, para receber os peregrinos que fazem longas caminhadas movidos pela fé e devoção à santa. Mas a pequena capela continua lá, singela e fresca, com vista para o mar.

      Passei lá outro dia. Estava vazia; o sol forte, a vista bela, muitos avisos de não acender velas e muitas velas acesas a iluminar os avisos. Andei pelos arredores e encontrei uma casa, portas e janelas abertas, nome escrito na fachada : casa dos milagres.

      Entrei num salão bem grande, com três bancadas enormes, duas nos cantos e uma no centro. Vi primeiro a do centro, cheia de casas. Miniaturas. Umas pequenas, outras maiores, de papelão, madeira, com varanda, chaminé, outras de um cômodo só ou de quatro quartos. Empilhadas. Feito favela no morro, escalavam umas às outras, se segurando e equilibrando não sei como. À minha direita, muitas próteses, pernas, braços, cabeças, mãos de cera , uniformes de policial, avental de enfermeira. À esquerda, muitas fotografias, centenas. Uma me chamou atenção . Era uma propaganda eleitoral de uma candidata a vereadora. Eleita; fiquei sabendo depois.

      Incontáveis milagres, histórias de dor e superação ali expostas para meu espanto e certo incômodo. Restos da fé.

      Enquanto eu olhava com curiosidade cada peça e imaginava seus segredos, uma senhora entrou trazendo pequeno objeto, que depositou junto às casinhas. Olhei. Era uma pérola. Ela saiu se dirigindo à capela para rezar. Segui-a. Fiquei do lado de fora. Assentada numa pedra na encosta eu olhava o mar em seu infinito azul e me perguntava sobre aquele objeto, tão inusitado, deixado na casa dos milagres. Uma casinha lá deixada dava para entender...remetia à aquisição de uma moradia, pelo devoto; se financiada pelo Minha casa, minha vida, então, verdadeiro milagre! Uma perna de cera também  podia  resultar da cura de alguma erisipela no precário hospital municipal- outro verdadeiro milagre!

Mas, e a pérola?

      Escutava o barulho das águas se arrastando nas pedras quando a senhora, tendo acabado sua reza, assentou-se ao meu lado. Olhei-a como uma interrogação e ela, com serenidade, me disse: quando entra um grão de areia ou outra substância indesejável no interior da ostra, as células de nácar começam a trabalhar e cobrem o grão de areia com camadas para proteger o corpo indefeso da ostra. Esta ferida cicatrizada é a pérola!  Joia feita de trabalho, de bordado da dor. Assim aconteceu comigo.

      A água do mar espumava seu riso, a prata do entardecer se derramava no infinito, sua mão se abriu em concha e nos cumprimentamos com emoção.
  




     

terça-feira, 5 de março de 2013

Mulher com brinco de pérola





Corpo indefeso
Trabalho de nácar.

Grão de areia estranho
Teço de lágrima.

Ferida cicatrizada
Bordo de dor.

Eu mulher
Brinco de pérola.