domingo, 28 de setembro de 2025

 

Coisas de boneca

 

Ela tinha a barriga carcomida. Os fios de algodão e fibra tinham sido arrancados n’alguma brincadeira mais violenta. Os braços estavam pintados de esmalte vermelho e os pés encardidos de terra. O rostinho até que estava sorridente com aquele tufo loiro de cabelinho pendurado na cabeça.

-Vovó, costura a barriga dela pra mim?

Linha e agulha na mão, fios trançados e barriga costurada.

Olhando para a caixa de costura encontro um retalho e invento fazer um vestidinho pra ela, coitada, tão pelada e agora com essa cicatriz cortando o ventre macio.

Chegam as crianças e a babá que prontamente se compromete a fazer o vestidinho dizendo ter feito curso de corte e costura.

Olhamos atentos, a tesoura rompendo o pano e as mãos hábeis trançando linha e agulha.

Vestido pronto, as crianças brincam com a boneca agora revivida e toda chique. Empurram no carrinho, dão comidinha, caminha pra dormir...

À noite, chega a mãe do trabalho para buscar as crianças e a babá.

De repente, ouço uma tagarelice vinda do quarto. Aproximo o ouvido “ah você assustou!?”...Ela fala! A boneca está falando!!

A babá arregala seus negros olhos e dispara para a porta. Recolhe pelo caminho as crianças, calça-lhes os sapatos, pega as mochilas e já está no corredor chamando, aflita, o elevador.

_ Mas mãe, essa boneca não fala, nunca falou! A outra é que falava tanto que tiramos o dispositivo de fala dela e jogamos fora! Credo! Que medo!

E a boneca tagarelava toda prosa com sua barriga costurada e seu vestidinho novo!

Saíram todos apavorados, não sem antes dizer para eu atirá-la fora. Coitada!

As crianças arrastadas sem nada entender!!

Vou tomar banho, comer algo e entro no quarto das crianças. Ouço a boneca dizer “te amo mamãe. Me dá um beijinho. Fico comovida. Procuro o dispositivo para desligar e não acho.

Vou escovar os dentes. Entro novamente no quarto e ouço “te amo mamãe. Me dá um beijinho”. Não resisto. Dou o beijo e digo: agora é hora de dormir. Boa noite.

Saio do quarto e fecho a porta. Ainda ouço “te amo mam...                 

Vou dormir. Não sem antes ouvir de minha filha apavorada ao telefone: joga ela fora, mãe!!

Na manhã seguinte, feriado, arrumo a bolsa para um passeio com amigos. Entro no quarto e ouço- “me leva pra passear”...

Tiro-lhe o vestido apressadamente. Rasgo a barriga e encontro o dispositivo ...Desligo.

Silêncio.             

 

 

 

 

Márcia Sartorelo Carneiro

Agosto de 2017

Nenhum comentário:

Postar um comentário