Coisas de boneca
Ela tinha a barriga carcomida. Os fios de algodão e fibra
tinham sido arrancados n’alguma brincadeira mais violenta. Os braços estavam
pintados de esmalte vermelho e os pés encardidos de terra. O rostinho até que
estava sorridente com aquele tufo loiro de cabelinho pendurado na cabeça.
-Vovó, costura a barriga dela pra mim?
Linha e agulha na mão, fios trançados e barriga costurada.
Olhando para a caixa de costura encontro um retalho e
invento fazer um vestidinho pra ela, coitada, tão pelada e agora com essa
cicatriz cortando o ventre macio.
Chegam as crianças e a babá que prontamente se compromete a
fazer o vestidinho dizendo ter feito curso de corte e costura.
Olhamos atentos, a tesoura rompendo o pano e as mãos hábeis
trançando linha e agulha.
Vestido pronto, as crianças brincam com a boneca agora
revivida e toda chique. Empurram no carrinho, dão comidinha, caminha pra
dormir...
À noite, chega a mãe do trabalho para buscar as crianças e a
babá.
De repente, ouço uma tagarelice vinda do quarto. Aproximo o
ouvido “ah você assustou!?”...Ela fala! A boneca está falando!!
A babá arregala seus negros olhos e dispara para a porta.
Recolhe pelo caminho as crianças, calça-lhes os sapatos, pega as mochilas e já
está no corredor chamando, aflita, o elevador.
_ Mas mãe, essa boneca não fala, nunca falou! A outra é que
falava tanto que tiramos o dispositivo de fala dela e jogamos fora! Credo! Que
medo!
E a boneca tagarelava toda prosa com sua barriga costurada e
seu vestidinho novo!
Saíram todos apavorados, não sem antes dizer para eu
atirá-la fora. Coitada!
As crianças arrastadas sem nada entender!!
Vou tomar banho, comer algo e entro no quarto das crianças.
Ouço a boneca dizer “te amo mamãe. Me dá um beijinho. Fico comovida. Procuro o dispositivo
para desligar e não acho.
Vou escovar os dentes. Entro novamente no quarto e ouço “te
amo mamãe. Me dá um beijinho”. Não resisto. Dou o beijo e digo: agora é hora de
dormir. Boa noite.
Saio do quarto e fecho a porta.
Ainda ouço “te amo mam...
Vou dormir. Não sem antes ouvir de
minha filha apavorada ao telefone: joga ela fora, mãe!!
Na manhã seguinte, feriado, arrumo
a bolsa para um passeio com amigos. Entro no quarto e ouço- “me leva pra
passear”...
Tiro-lhe o vestido apressadamente.
Rasgo a barriga e encontro o dispositivo ...Desligo.
Silêncio.
Márcia Sartorelo Carneiro
Agosto de 2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário