quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Bichos

Ele alimentava os ratos e as baratas com açúcar e queijo no quarto de pensão na Lagoinha. Era uma maneira de conservar seus papeis e livros velhos.

Tudo corria bem até o dia em que ratos e baratas foram submetidos a exame de glicose e colesterol. Voltaram a atacar papeis e livros por recomendação médica.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Bilhetes trocados

Carolina ouve um barulho na janela. Tateia o pombo e encontra um bilhete. Desenrola, sente o cheiro de café e avelã. Escaneia no Dosvox e escuta:

-para a moça dos olhos indecifráveis:

sou aquele que passa por sua janela as 16,47 e carrega um pombo no ombro.

Pressinto que, atrás de seus olhos de neblina, há imensa vontade de amar.

Venha, vamos conversar, estou no bar.

Colombo.

Carolina sentindo o coração acelerar, se lembra daquele perfume de avelã que passeia toda tarde por sua janela. Escreve e imprime outro bilhete:

-para Colombo, que carrega um pombo no ombro:

queria mesmo me arriscar a amar, voar, atravessar a serra do mar, saber rimar e no bar te encontrar.

Estou indo devagar, pode esperar.

Carolina.

Depois de despachado o bilhete pelo pombo correio, Carolina vestiu seu melhor vestido, pintou os lábios de cereja, amarrou os cabelos em coque, passou seu indefectível perfume, colocou seus olhos de vidro e saiu com sua bengala branca.

Queria ver no que ia dar poder arriscar.

Márcia Sartorelo Carneiro.

A conta não fecha!!

A conta dividida por três dava 16,66666.

Tentaram, em vão, arranjar moedas para o pagamento.

Decidiram dar, cada uma, uma nota de 20,00 e pediram o troco separado.

-O garçom que se vire!

Este, por sua vez, demorou ...demorou...

Resolveu levar o troco de 60 menos o valor da conta (50,00) sem dividir.

- Elas que se virem!

Elas, na impossibilidade, resolveram deixar o troco para os três garçons

que serviam no bar.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Festa de aniversário

-Afinal, o que é poesia?

-Poesia é o som que circula na vida como puro acontecimento.

-Simples assim?

-Escute com atenção: o que transborda é poesia.

Contornar os lábios com lápis batom.

Preencher a carne rosada com vermelho cereja.

Apertar os lábios para espalhar bem a cor.

Ouvir no final o barulho de beijo jogado ao vento.

Salto alto pisando o chão do mundo em acelerada cadência.

O vinho escorrendo caudaloso para dentro da taça.

O tilintar dos cristais.

A dona da festa de seus 60 anos arrastando alegre seus paetês brilhantes pelo salão.

O burburinho das vozes, dos gestos, dos olhares.

O ruído das lembranças da infância, da maternidade, da amizade.

O amor tamborilando sereno no balançar dos quadris pelo salão de dança.

O jantar servido ao som dos pratos e talheres como bateria de escola de samba.

O parabéns para você entoado em coro desencontrado.

O sopro ruidoso do apagar dos anos.

A cabeça zoando.

A chuva pingando miúda.

O barulho da chave na porta.

O farfalhar dos lençóis na cama.

O silêncio dos sonhos na noite quase dia.

- Então, a vida não é, ela mesma, poesia?

Márcia Sartorelo Carneiro.

-

Flor do baile - agora em imagem

Flor do baile
Eternizada na imagem.

sábado, 20 de novembro de 2010

Divagando

No colo,
me calo.
Mas o calo,
como dói!

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

No umbral da escrita

Era uma terça-feira, dia dois de novembro de 2010.Chuva caia fina na tarde cinza como lâmina de puro aço. Vesti-me rapidamente, peguei bolsa, baton, sombrinha e corri para o Conservatório, onde se realiza minha oficina de escrita, deleite das tardes de terça-feira.

Entrei meio esbaforida porque em pequeno atraso e quando abri a porta da sala me surpreendi porque não havia ninguém.

- Uai, o povo também está atrasado! Nem o Ronald chegou ainda!

Saí para beber água e, ao passar pelos corredores, escutei um som vindo do andar de cima. Orquestra de câmara, pensei. Tocava a marcha fúnebre, de Chopin. Linda, profunda, inquietante. Subi a escadaria e através da greta da porta observei uma menina (e seu desejo) regendo compenetrada a orquestra, gestos suaves e precisos como o voo de uma borboleta. Encantada me deixei escutar.

O barulho de uma porta batendo me chamou atenção e eu desci achando que meus colegas haviam chegado. Entrei na sala e encontrei a irresistível Rosalva, com seu provocante decote, de mãos dadas com o amolador de facas. Padre Nonato esconjurando e D. Maroca gritando de medo e prazer, com o cachorro Sansão se esfregando em suas pernas.

Surpresa, vi Alice chegando apressada, acompanhada do coelho branco, agora cinza, e do Chapeleiro Maluco. Corria da rainha de copas, que gritava:- cortem todos os voos! cortem todos os voos!

Mais adiante, Godofredo e Gertrudes, enrolados em suas toalhas bordadas de “G”, se acariciavam enquanto Joaquim, vindo diretamente de Guiricema para o encontro marcado, trazia na mala o livro vermelho e dourado dos contos inventados e decorados.

No fundo, Noel dedilhava a “Nossa separação”, acompanhado do Vadico, fazendo fundo musical para as conversas de Maria Tomba Homem e sua turma, que, irreverentes contavam causos do padre Natanael. Este por sua vez irrompeu magistralmente pelo recinto e praticou, ali mesmo sua transformação...”penteava os pelos, estes cresciam pelo corpo, dentes afiados de lobo despontavam, olhos sedentos espreitavam”.

-Lobisomem!!!Ouvi um grito de pavor e vi tia Tita, tecendo seu crochê nas meias de lã usadas no inverno, se arrastando em direção a D. Candinha, buscando a proteção do Ulisses que já mostrava os dentes e tomava posição de ataque ao lobisomem.

Corri também eu desesperada e atônita com a realização da palavra que se fazia ali naquela sala onde a renda da invenção se fiava.

Ao chegar à porta de saída, escutei um estrondo e vi as águas do rio São Francisco transbordando do Palácio das Artes, trazendo a bordo do Benjamim Guimarães a mãe d’água, uiaras, tutumarambás, serpentes do rio, carrancas e ribeirinhos. Malas, peixes, casas e árvores submersas nadavam pela av. Afonso Pena seguindo o curso do rio.Vi Ronaldo quase nauFragando na tentativa de salvar seus lindos vestidos bordados de rio.

Atravessei a nado o mar doce de águas barrentas e no café do Palácio das Artes encontrei finalmente a Flávia, Maria Eugênia e Sebastião, meus colegas das tardes escritas das terças-feiras. Juntos tomamos um café Milano coado nas águas do Velho Chico.

Irc, que nojo!

Saí do Palácio das Artes sorrindo. Fechei a porta. Ainda ouvi o último acorde da sonata nº2, 4º movimento(finale), de Chopin.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Finados

Lírio-branco para meu pai.
Rosa-vermelha para minha mãe.
Amor-perfeito para meu filho.
Sempre-viva a saudade.

sábado, 30 de outubro de 2010

Flor do baile

Para D. Vera, a dona do baile

Para Beatriz, que me contou a estória

D. Vera é mineira, costureira e quitandeira. Mora numa casinha com eiras e beiras ali para os lados do Santa Efigênia.Quando moça adorava dançar. Ia para os bailes no Elite com seu Sebastião e rodopiavam os mais românticos boleros. Agora sem marido e com aquela artrose nos joelhos ficou difícil para D. Vera se esbaldar nos salões.

Outro dia, quando já ia saindo de sua casa depois de provar o vestido que ela costurava para mim e me fartar com suas quitandas acompanhadas de delicioso café, ela me chamou para mostrar seu jardim.

Fiquei encantada! Uma parreira carregada de pequenos cachos se debruçava no avarandado e ao lado via-se um pequeno jardim. Beijos, margaridas, rosas, jasmins, manacás e prímulas se esparramavam pelo outubro primaveril. Ela me puxou pela mão para me mostrar uma pequena trepadeira que se esgueirava na noite úmida. E eu vi flores miúdas, brancas e singelas.Nunca as tinha visto e ela me disse:

- Chama-se flor do baile.

Achei diferente o nome e perguntei o porquê. Ela explicou:

- Essa flor tão delicada tem a duração de um baile, nasce e morre durante uma noite.

Fiquei tão estarrecida que a tomei nos braços e bailamos ali mesmo no jardim como duas crianças. E então ela me confidenciou:

- Essas noites de primavera em que baile nasce-morre na sua efêmera existência, eu sonho que estou dançando com meu amado. O sonho dura toda a noite e vai embora quando a flor do baile também vai. Mas este instante vale uma vida!

Aproximei-me de D. Vera e olhei em volta no jardim florido.

Os bailes, fulgurantes e prontos para viver só por uma noite, me tiraram para dançar e eu, de vestido florido, abraçada de flores bailei a primavera inteira-instante.

Márcia Sartorelo Carneiro.

Minha escrita

Escrevo ali
onde não penso,
do lugar onde vivo.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Canto

Recebi por e-mail.

Era imagem e música.

Não era poema escrito,

sofrido,

rimado.

Mas era poesia.

Uma fotografia:

pássaros pousados nos fios de luz da rua.

Presos na imagem,

sem canto.

Alguém olhou:

virou nota pousada na pauta.

Solto da imagem,

pelo canto.

Pássaros pousados na pauta

Permitem pensar partituras.

Fazer-se música,

E voar.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Chuva

O céu vestiu-se de cinza.

Acendeu raios que o trovão apagou.

Fez-se líquido

E desabou.

A terra escorreu seus caminhos.

Abriu-se em gozo de germinar sementes.

Fez-se bela

E desencantou.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Uma praça...muitas histórias

Era uma praça da minha Belo Horizonte. Simples, mas acolhedora. Traçado retangular com largos canteiros gramados e floridos. Ipês e palmeiras coloriam e sombreavam pensamentos. Hibiscos e manacás perfumavam os cantos da praça e dos passarinhos que lá faziam seus ninhos.

Encontrei-a pela primeira vez aos quinze anos quando vim morar em BH, na Floresta.

Tudo muito diferente daquele interior onde passei minha infância. Tudo grande, tudo longe, tanto carro, tanto ônibus, tanto desconhecido, tanto a desbravar. Essa pracinha foi um primeiro refúgio para essa vida nova que se anunciava. Servia de braço acolhedor e de impulso para novas aventuras.Viu nascerem meus primeiros amores.Mãos dadas e beijos furtivos passeavam entre seus jardins. Viu nascerem meus primeiros poemas escritos à sombra de um flamboyan.

Passaram-se os anos e agora são meus filhos que brincam ali. A Ju troca brinquedos com a menininha ruiva para experimentar sua boneca-bebê sendo empurrada num carrinho. O Pê aposta corrida de bicicleta com o gordinho e me encontra ofegante para enxugar o suor que escorre pelo seu rosto quente e rosado. Depois sobem juntos na árvore para testar seus músculos e meus nervos. Cenas ternas da infância e maternidade que a pracinha guardou.

Passaram-se os anos e agora ela amanhece cheia de gente caminhando apressada, ofegante, roupa esportiva, tênis, filtro solar. Algumas conversam animadamente enquanto caminham, outras vão ouvindo rádio no fone de ouvido, outras sós com seus pensamentos. Mas todas, sem exceção, parecem querer chegar a algum lugar apesar de não sair do lugar. E rodam, velhos e moços.As crianças continuam no centro brincando, as bicicletas incomodando.

Os bêbados e drogados também fazem pouso nesta praça. Também os lavadores de carro e tomadores de conta de carro. Contrastes se encontram e lá se cristalizam.

Debaixo de uma pérgula enfeitada de flamboyan sempre tem alguém morando ao ar livre. Dormindo num papelão e cobrindo com um cobertor peleja.

Mas este morador agora decide ocupar para sempre o território. Monta toda noite sua casa com paredes de papelão, teto de plástico para proteger da chuva e do lado de fora uma lata de lixo. Tem até um anexo onde dorme seu cachorrinho. De manhã, desmonta sua casa, dobra seus pertences, coloca-os nos bueiros próximos e vai trabalhar de lavador de carro.

Hoje, passei por lá quando voltava da zona eleitoral onde fui votar em presidente, governador e etc. O chão da pracinha estava coalhado de papel: santinho de candidato.

O morador da praça colava os restos da eleição num quadrado de papelão. Uma carinha junto da outra, um número debaixo do outro, saúde, educação, moradia...

Ia enfeitar sua casa.

Uma praça...muitas histórias.

Márcia Sartorelo Carneiro.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Crochê, textos e sonhos.

Maria tece crochê.

Tece há muitos anos textos.

Tece há quase sessenta anos sonhos.

O crochê aprendeu com uma velha tia de seu pai- tia Tita – assim a chamavam. Senhora de seus quase noventa anos arrastava uma cadeira para se movimentar desde que havia fraturado o fêmur numa queda. Formavam uma só pessoa: ela, a cadeira e o crochê. Vivia com agulha e linha trançada no pescoço, o coque prendendo longos cabelos brancos e para ensinar usava a delicadeza.

Maria aos 11 anos tecia palas de camisolas, blusinhas, biquinhos e toalhinhas para enfeitar seus sonhos adolescentes, para contornar os furos abertos e sem respostas, para amarrar os traços dos caminhos feitos, para tramar histórias da vida a ser vivida.

Os textos aprendeu com D. Terezinha no grupo escolar. Primeiro o desenho das letras, o encontro combinado entre elas, as palavras mágicas, o texto tecido tramado. Depois disto tudo, o texto nascido, parece até que já escrito noutro lugar e presentificado com prazer.Quase como um filho, criança, criação.

A ambos – o crochê e os textos - faz com as mãos, ora um, ora outro, nunca os dois ao mesmo tempo.

Os sonhos, como não são aprendidos, ela é que se apreende neles. São eles que a tecem, a tramam, a escrevem. Contam as histórias dela.

Só neles ela pode ao mesmo tempo tecer crochê, textos e desejos.

Maria tem sonhado muito.

Quer comprar uma passagem de navio, mas não entende a língua falada pelo bilheteiro.

Quer viajar de avião, atravessar o mar, mas apresentam-lhe uma lista de exigências para a viagem numa língua que ela não compreende.

Quer comprar um doce de amendoim. A velha vendedora fala coisas incompreensíveis.

Ela quer continuar querendo.

Maria quebrou o bibelô da mãe. Ela quer aparecer aí entre o bibelô e a mãe. Passar de bibelô a mulher tecelã. Crocheteira, escritora, sonhadora.

Maria continua trabalhando...tecendo...sendo...

Márcia Sartorelo Carneiro.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Conto da Provence

Era uma noite em Lourmarin.Saímos do Chambre d’hôte onde havíamos nos hospedado, depois de uma busca insana pelos hotéis da redondeza, muito caros ou sem conforto, buscando um restaurante na cidade. Estávamos com muita fome depois de um dia de peregrinação pelos belos campos de lavanda do Luberon-Provence - Gordes, Vaucluse, Roussilon e tantas outras pequenas vilas do sul da França.

Mesa posta. Vinho, água, pães, azeite...para começar.Os pedidos feitos: canard, rouge, boeuf.

- Os turistas não vão beber? Interroga ao garçom nossa vizinha de mesa, uma senhora de seus 70 anos, alta, esguia, farta cabeleira branca, olhos espertos e sorriso acolhedor.

O garçom havia se esquecido de abrir o vinho e este foi um bom pretexto para que a senhora, ávida por companhia ou, talvez curiosa com aqueles turistas encapotados no início da primavera francesa, logo puxasse conversa. Ela também observou o fato de estarmos com nossos grossos “manteau” enquanto os demais em manga de camisa. Ao ver compreendido o seu francês e, reciprocamente, compreender o meu, na sua mistura com o italiano e português, percebeu que já tinha companhia para o seu jantar.

A conversa se estendeu noite adentro, até que me lembrei de ter lido antes da viagem que era naquela cidade que havia morado Albert Camus, filósofo e escritor argelino francês, meu preferido nos tempos da faculdade e da Aliança Francesa.

- Sim, me disse ela, ele está enterrado aqui. Quiseram transferi-lo para o Pantheon, em Paris, onde estão os célebres franceses, mas a família não autorizou.

Camus...pensava eu, quero vê-lo, quero lê-lo, quero voltar àquele tempo dos meus 20 anos. Quero perguntar pelo absurdo do mundo, pelo sentido da vida, pelas escolhas que não fiz, pela liberdade e responsabilidade, pela existência e pela revolta!!

Engoli rapidamente a sobremesa, me desvencilhei de meus companheiros de viagem e arrastando a velha pela mão pedi que me conduzisse ao túmulo de Camus.

Precisava resgatar parte de minha vida vivida com ele.Suas idéias, suas emoções, suas angústias que eram também as minhas. Depois de 35 anos o que havia restado disto?

E a velha não se recusou. Animou-se ela também; não que me parecesse filósofa de grandes idéias, mas porque simplesmente vivia e se emocionava, e seguia os acontecimentos, o inesperado.E era muito inusitado que uma turista brasileira a arrastasse àquela hora da noite para o cemitério da cidade, para ver Camus. Certamente, era inusitado!

E lá estava Albert Camus- 1913-1960. Morreu jovem. Um túmulo simples de mármore branco com detalhes preto e cinza. Algumas alfazemas num vaso exalavam seu perfume na noite enluarada da primavera provençal. O mistral soprava e entoava um canto agudo compondo o tom ameaçador do lugar.

Não tínhamos medo.

Buscava em mim as perguntas que lhe faria. Silêncio.

Buscava em mim as emoções que sentiria. E chorei....

Chorei um choro manso e denso.

Camus havia morrido. Meus vinte anos haviam morrido. Enterrados os dois numa cidadezinha da Provence.

Olhei assustada procurando a velha. Ela me esperava serena, à distância, e me acenou com doçura. Partimos.

Márcia Sartorelo Carneiro.

domingo, 5 de setembro de 2010

Num tempo da delicadeza

...“Te encontro com certeza talvez num tempo da delicadeza.

Onde não diremos nada.

Apenas seguirei como encantado ao lado teu .”

- ... num tempo da delicadeza não diremos nada!... Como então escrever um poema sobre delicadeza...Um poema sem palavras...Um poema delicado?

Era isto o que D. Candinha pensava enquanto escutava o Chico Buarque cantar “Todo sentimento”. Como toda mulher de múltiplos afazeres, também nesta hora, escaldava o polvilho, metia-lhe o queijo, enrolava as bolinhas e punha o pão de queijo pra assar no forno à lenha de sua cozinha na mineira cidade de Sabará.

D. Candinha era poeta nas horas plenas do dia. Enchia-lhes de poesia, as ruas com seus flamboyans, os jardins com suas margaridas, as janelas com suas histórias vistas, a cozinha com seus cheiros de queijo tostado!!!! Meu Deus, o pão de queijo vai queimar!! E lá corria ela a retirar os tabuleiros do forno, os dedos sapecando no pano úmido, o calor adentrando os poros, o perfume do café quentinho, as crianças se achegando, limpando as mãos na roupa, segurando pão de queijo na barra da camisa, assoprando pra esfriar..

....”Te encontro com certeza talvez num tempo da delicadeza...” pensava ela quando Seu João adentrou pela casa trazendo os peixes que havia pescado logo ali no Rio das Velhas. Era isto o que dizia e todos desconfiavam da conversa de pescador. D. Candinha vendo os peixes reluzentes lembrou-se de Adélia Prado e seu poema : Casamento

.”.. ajudo a escamar, abrir, retalhar salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha.

O silêncio de quando nos vimos pela primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo.

Os peixes na travessa, vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

Somos noivo e noiva.”

-Vou te ajudar a limpar, disse olhando pro João e pensando nas coisas prateadas que espocam.

...” Onde não diremos nada” continuou a pensar enquanto tirava o pó do beiral da janela. Via, sob o mormaço quente da tarde, a Tereza passar carregando lata d água na cabeça. Via também o Tião correndo atrás arranjando a lata na sua bicicleta e Tereza se ajeitando na garupa. Água esquentando no fogão. O banho tomado. Coisas prateadas espocam...

...”Apenas seguirei como encantado ao lado teu”.. olhou pro tapete da sala. Lá estava Ulisses, seu cão labrador, olhando pra ela, sacudindo o rabo, pedindo carinho, oferecendo presença. Sentou-se no sofá e ele aninhou-se a seus pés, cabeça erguida de modo a não lhe perder de vista. Tomou a caneta e o papel que a inspiração chegava. E procurou as palavras para falar da delicadeza. Buscou as situações, as experiências, as constatações, os sentimentos, as rimas, as metáforas, os estudos sobre este tema tão delicado, ela dizia. E escreveu uma poesia. Deixou-a na mesinha ao lado enquanto ia acender a luz que já fazia quase noite.Um vento forte jogou o papel no chão. Ulisses mastigou o papel e com ele as palavras.Vendo-o saborear o mau feito D. Candinha, sorrindo, disse:

- Até parece que ele já sabia que num tempo da delicadeza não diremos nada!

Márcia Sartorelo Carneiro.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Sonho

Eu estava em Amsterdã no ano de 2001. Fui visitar a casa onde Rembrandt havia morado. Muita emoção me cercava ali.Eu admirava as obras deste pintor holandês do séc. XVII.Havia feito um curso sobre a arte e pintura holandesa barroca.Tudo o que queria era estar ali entre os brocados, os tecidos, o claro-escuro, o dourado, as sutilezas e delicadezas das obras de Rembrandt.Queria ver sua casa, sua cama, seu atelier, as escadas onde havia pisado, os objetos que havia tocado, as intimidades que havia compartilhado. E ali estava eu como puro sonho.

Entrei na casa estilo sobrado holandês e, logo no hall, parei estupefata diante da cena! Havia uma mesa-gaveta com tampo de vidro e dentro um prato, uma caneca e uma colher dispostos displicentemente dentro da gaveta. Meu olhar deslizou para a parede e, logo acima, os mesmos objetos - prato, caneca e colher - pertenciam a um quadro pintado e pendurado acima. Mesmas cores, mesma textura, mesma ocupação de espaço, mesma displicência, mesma singeleza agora em duas dimensões.

A duplicidade daquela cena, a pureza, a simplicidade me encontraram num tal estado de comoção que comecei a tremer, a chorar, a me extasiar diante daquilo que me devolveu à minha própria infância e seus objetos. Objetos de minhas refeições em família, objetos de minhas brincadeiras com minhas bonecas. Dar de comer a elas, fazer comidinha, picar o mato e misturar o barro, acender o fogo de mentirinha, arrumar a mesa, a boneca no colo, o prazer da sopa quentinha e saborosa, os braços de minha mãe. Objetos capturados do naufrágio daquele navio onde viajavam minhas melhores lembranças. Objetos já enferrujados e carcomidos, mas resgatados em sua plena emoção.

E me assustei quando alguém me tocou a face e disse:

-Você está bem?O que aconteceu?

Eu acordei como de um sonho.Me refiz rapidamente, e disse:

- Menina, não entendi nada! Foi pura emoção!

Márcia Sartorelo Carneiro.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O branco, o pérola e o azul

O professor pediu que descrevêssemos uma foto que nos apresentou.

-Para treinarmos as nuances e particularidades da descrição na literatura, disse.

A mim coube uma fotografia intitulada Iemanjá - lia-se atrás do retângulo 40 por 30 de papel colorido. Quando recebi o meu logo pensei que não era por acaso. Ela tinha me escolhido! Só eu, como filha de Iemanjá, poderia retratar com palavras as características e emoções deste orixá africano.

Tomando o retângulo em minhas mãos logo escrevi o título: o branco, o pérola e o azul. E descrevi o que via...Meninas vestidas de fino branco e longos vestidos seguram o véu translúcido que desce dos ombros de Iemanjá. Esta, com olhar lânguido e de um azul profundo comanda altiva sua corte de adoradores.Trazem flores e orações, devoção e fervor.Caminham pelas areias da praia molhando a barra da saia. De costas para a água salgada do mar, uns nos olham com serenidade e outros distraídos para o mar. O rapaz também de branco olha devoto para o céu.

Mas era pouco o que via e eram muitas as imagens que me visitavam de minhas histórias com Iemanjá. Passo então à narrativa, pois narrar é contar, dizia o professor.

Estava na praia em Arraial da Ajuda quando um dito vidente me disse, depois de lhe ter pagado 20,00 reais de honorários, que eu era filha de Iemanjá – a rainha do mar. Fiquei a pensar como será que ele descobriu isto? Será por que estava vestida de azul e branco?Ou será que me viu benzer com a água salgada pedindo proteção a Iemanjá antes de entrar com sofreguidão no mar?Ou será que num relance já me percebeu voluntariosa, forte, caridosa, ingênua, vaidosa, temperamental, impetuosa e dominadora com os arquétipos dos filhos de Iemanjá? A resposta nunca saberei, porque intuição não tem explicação.Contentei-me em reafirmar minha filiação e se já me considerava filha dela, agora tinha quase a certidão de nascimento registrada pelo vidente, evidentemente, ou será que não mente?

Assim, quando quis parar de fumar depois de alguns anos de prazeroso vício, me preparei para jogar o maço de cigarros para ela na passagem do ano de 1996, na beira da praia, em Cabo Frio, antes do foguetório que dava início ao novo ano. Aviso que o isqueiro eu não joguei e por isto me eximo de qualquer responsabilidade sobre as mortes de animais marinhos comedores destas porcarias plásticas que são jogadas no mar. Apreensiva, mas crente nos poderes de Iemanjá pedi que ela levasse os cigarros e junto com eles minha vontade de fumar. Não durou uma semana o poder de Iemanjá.Voltei a fumar. Ano seguinte o mesmo ritual e na semana seguinte ela devolveu o maço embrulhado em fita e depositado na areia. Voltei a a fumar.Somente no terceiro ano de minha insistência ela atendeu minhas preces e, como disse um amigo meu, resolveu fumar os maços que lhe joguei me deixando livre do vício. Salve Iemanjá!

Um dia, era dois de fevereiro, eu estava em Salvador, na Bahia. Dia de Nossa Senhora dos Navegantes, outro nome de Iemanjá. Todos os baianos e turistas se enfeitavam para a festa no Rio Vermelho, local de onde sai a procissão dos navegantes em direção ao alto mar levando as oferendas para a rainha do mar. Cheiro de alfazema, rosas brancas e vermelhas, braceletes, pulseiras, colares, manjar branco, bolo de arroz e peixe, fitas e velas e gente...Muita gente enfileirada para depositar suas oferendas nos grandes cestos e arcos que saem ao cair da tarde rumo ao infinito. E fé, contrição, pedidos, agradecimentos, emoção. Eu estava lá, três horas na fila, o sol queimando a pele, com minhas três rosas brancas nas mãos, um ardor no peito, uma alegria de participar da fé daquele povo, escutando as histórias dos milagres e dos feitos de nossa senhora mãe do mar.

Meu amigo tinha ido embora pro hotel. Como pode uma pessoa tão esclarecia, intelectual, estudada, se prestar a um desatino deste, dizia. Ele, comunista e ateu convicto, repetia indignado que a religião era o ópio do povo. Mas eu só saí de lá depois de cumprir minha obrigação de fé e prazer.Rezei e depositei minhas flores num cesto que seria levado para ela. À tardinha, do terraço do hotel vi os barcos entrando no mar carregados da fé dos devotos de Iemanjá. Meu amigo sorriu porque era bonita a paisagem.

Recentemente fiquei conhecendo outro orixá, também das águas, mas esta, das águas doces- Oxum. E alguém me disse:- acho que você é mais filha de Oxum.

Iemanjá é mulher-mãe, do tipo que acolhe seus filhos, cuida, protege e abençoa.

Oxum é mulher, mas é mulher-fêmea, do tipo sensual, sedutora, maliciosa, enigmática, feminina.

E lá fui eu pensando em como ela teria percebido isto? Será que me viu vestindo azul e dourado na última festa? Será que me viu bebendo as águas doces do rio Guamá, no Pará, e me benzendo? Será que me escutou dizendo baixinho...O que é mesmo uma mulher? Será...?

Márcia Sartorelo Carneiro.

domingo, 1 de agosto de 2010

Guarda este poema!

Gostaria de tê-lo feito! Foi o que disse quando acabei de ler o poema de Antonio Cícero. Transcrevo abaixo: Guardar Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é estar acordado por ela, isto é, estar ou ser por ela. Por isto melhor se guarda o voo de um pássaro Do que um pássaro sem voos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo: Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: Guarde o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema: Por guardar-se o que se quer guardar. Algumas vezes digo isto quando sinto que leio algo que já estava quase pronto em mim e encontro assim prontinho fora de mim. Ou também quando algo responde a uma pergunta que venho há tempos me fazendo. Resposta germinando e, enfim... Resposta encontrada! Foi este o caso do poema citado. Em italiano, olhar – verbo- se traduz como guardare: io guardo...eu olho.. Para mim parecia tão contraditório que o guardar pudesse ser olhar! Guardar é esconder, tirar das vistas, não expor, não exibir, não mostrar!E essa agora? Guardar silêncio, guardar segredo, guardar-se, guarda sexo, guarda vidas... No carnaval mulheres e homens usam só um guarda sexo.Será para olhar ou para tapar? Nas confidências se guardam segredos. Será para esconder ou para revelar? Nas solenidades se guarda silêncio. Será para velar ou para desvelar? Menina você deve se guardar!!Será que para se preservar ou para se deixar mostrar? E o guarda vidas postado na sua cabine frente ao mar? Será para olhar a vida passar? Ou para proteger a vida de passar? Ora, guarda! Vida, sim!

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Como (des) fazer um caminho

Tecer, Enlaçar vazios, Contornar buracos. Linha saltitando apressada sobre a agulha, Fechando espaços, Definindo estradas. Tocar, Abraçar os fios, Enluvar tecidos. Pontos se perfilando apertados sobre a superfície nua. Criando textura, Virando brilho. De repente - um corte- Rompem-se amarras! Fios soltos tentam desesperadamente se fechar em nós. Desmancham buracos, Apagam rastros. Resta - o horror da carne sem tessitura! Mas ... de novo... Restam fios – pra tecer vazios! Restam mãos - pra tocar tecidos! Restam pontos - pra traçar caminhos!

domingo, 18 de julho de 2010

Saudade Pedro

Você foi. Fiquei. É cedo. Parece tarde. Tão cedo! Muito tarde! Cedi! Recomeço! Você foi. Fico. Adeus. Até a próxima lembrança.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Almoço em família

Mesa posta em dia de domingo. Perfilados no campo retangular 10 pessoas. Nas cabeceiras o pai, de um lado, e o avô, do outro. Do lado direito a avó e seus netos – Mateuzinho, Tadeu e eu. Do lado esquerdo a mãe, sua irmã, cunhado e sobrinha. D. Doralice como 11º jogadora tirava o leitão assado e pururucado do fogão e o colocava na mesa sob os aplausos dos mais famintos. Enquanto a avó servia os acompanhamentos para o avô e os netos, a mãe avançou para destrinchar o pobre leitão, e passava um naco para o pai, que por sua vez passava para a cunhada e esta para o marido. A tia nos servia a bebida com pedras de gelo saltitantes enquanto os adultos serviam-se do vinho tinto da Bairrada. A conversa corria solta, quicava, subia de tom, ziguezagueava entre os comensais e Mateuzinho chutava a canela de Tadeu que atrevido dava um carrinho na perna de pau da cadeira da Gabriela que se estabacou no chão. - Falta de educação, menino! Vá já pro seu quarto! Cartão vermelho! ralhou o pai. Massagistas improvisados correm em socorro a Gabriela que fazendo cera chora copiosamente enquanto D. Doralice com seus braços maca a carrega no colo com carinho. Refeita volta a atacar seu pedaço de leitão com batatas fritas sob o olhar atento de minha tia, que, de salto alto, torcia o nariz para a falta de modos dos sobrinhos. Enquanto rolava a conversa o avô matava no peito a azeitona que havia fugido do prato do neto e a agarrava com vigor.Risos gerais! Nesta hora, já tendo me fartado com as comidas e trapalhadas da família, pergunto: -E aí D. Doralice, tem sobremesa? E ela vem correndo da cozinha com uma tigela cheia de bolas de sorvete coloridas. Tropeça e enterra a tigela com bola e tudo na cabeça do meu pai. Silêncio... De repente um grito em uníssono: é gol !!!!!!!!

domingo, 4 de julho de 2010

Dançarina

Catarina era pequena, um metro e meio. Cabelos tingidos de preto avermelhado, longos e com alisamento definitivo. Olhos espertos vasculhavam num segundo o salão de dança, procurando não se sabe o quê. Tinha aproximadamente 55 anos sendo um deles de pura viuvez. O marido trabalhara duro até se aposentar e poder curtir a vida. Não durou nem um ano a curtição. Um infarto entupiu seus planos... coitada! Seu médico indicara sair pra refazer a vida, construir novos laços,. Ela havia percorrido todas as escolas de dança de Bh pra ver onde se sentia melhor, onde seria melhor aceita e recebida . Foi ali no Espaço de Dança que ela resolveu ficar e iniciar-se nos mistérios da dança de salão. Bolero, forró , samba , salsa ,soltinho e o que mais viesse ela toparia , desde que fosse no seu ritmo, aprendizado lento, sem afobações juvenis. Pra se distrair, como ela dizia. Tempo passou e seu olhar, antes nistagmático, começou a pousar devagarinho num moço ( modo de dizer...era um coroa dos seus sessenta anos, alto , forte, engenheiro elétrico, sorriso maroto, conquistador, conversado). E ela pensava ...ah como gosto quando ele entra e risca com o olhar o salão e nossos olhos se encontram... A professora dizia:- vamos trocar de par. E de repente, lá estavam os dois num abraço meio desajeitado, ela com os bracinhos na cintura dele...ele meio curvado tentando encaixar aquela pequenez no seu corpo... ela na pontinha dos pés querendo parecer grande...ele conduzindo compenetrado a dama pelo salão tentando acertar o ritmo..Seria cômico se não pressentíssemos o amor nascente, o desejo se insinuando (pelo menos da parte dela.).Seria trágico se não percebêssemos as insinuações dele.É amizade ou namoro, perguntava alguém. È namoro, dizia ele. E ela se sentia desfalecer. Certo dia a professora pediu que as mulheres dançassem de olhos fechados para melhor se deixarem conduzir. Ela imediatamente fechou os dela e ele sussurrou:- vou te beijar. Ela abriu num segundo e disse:- ai que medo! Riram os dois. Assim seguia Catarina, pequena dançarina.Tinha jeito, a danada.Fazia de seus movimentos um instrumento a mais a tocar acompanhando a música...no mesmo compasso...mesmo tom....mesma melodia. Um dia saíram juntos da escola de dança pra pegarem os respectivos carros que estavam estacionados próximos e ele, ao vê-la abrir o carro, entrou e se assentou ao lado dela. Ficaram ali conversando e ouvindo música.Ela tinha gravado um cd com boleros e salsas espetaculares.Ele queria um beijo. Ela pensou no finado marido, nos filhos, na empregada, no cachorro, papagaio, formigas e até na baratas que as vezes apareciam na sua casa..Cruzes que estes pensamentos são incompatíveis com situação tão romântica!! Mas ela pensou e rapidamente dispensou e beijou-o com paixão.Ele meio confuso disse que estava voltando para a antiga namorada....e a beijava mais intensamente. Que tinha também conhecido uma outra pessoa, colega de trabalho, com quem estava saindo... e a beijava mais intensamente. Ela perdida nos beijos que há muito não experimentava se deliciava e se indignava. Até que num dado intervalo disse:- olha que eu não sou mulher de ficar na fila esperando homem... e vc me colocou em terceiro lugar...primeiro a antiga namorada... segundo a colega de trabalho...Ora, eu estou acostumada a ficar sempre em primeiro...alguma vantagem devo levar em ser pequena! Abriu a porta do carro, mandou-o descer e arrancou. Ficou com gosto de decepção na boca. O bom é que agora já sabe dançar. Márcia Sartorelo Carneiro

Sonho de papel

“...acende a fogueira do meu coração”... Era este o sonho que o vento carregou. Vento forte que carrega o balão. Vento forte que apaga o fogo. Vento forte que nem deixa o fogo acender. Coração em festa para um João. Coração preparado para ser aceso. Coração em fogueira esperando fagulha. E João não veio. Não tinha coração ou o vento o carregou também!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Nossa separação

Querido Noel, Depois de terem escutado sua música – último desejo- pediram-me que contasse o porquê da nossa separação.É claro que cada um conta a sua história do seu ponto de vista. E vou desenhar o meu. Eu realmente lamento e choro a nossa separação. Éramos muito felizes. Você muito romântico cantava e compunha coisas lindas dizendo que eram para mim.Éramos amantes insaciáveis e sinto saudades disto. Éramos companheiros de idéias e nos ocupávamos delas , até nos divertíamos com elas.Tudo isto me traz boas recordações. Quanto ao botequim a que você se refere na música eu às vezes me assento lá esperando que você chegue com seu violão e suas cantigas. Até tomo uma cerveja em sua homenagem e pagaria muitas outras se você estivesse lá. Não Noel, o que nos separou não foi a bebida, a boemia, a conta pra pagar. Isto eu até aguentaria. O que nos separou foi o Vadico! E mais - o Ismael Silva, o João de Barro, o Lamartine, o Almirante, o Chico Alves! Estes sim eram seus parceiros. Vocês eram música e poesia - par perfeito. Não há amor nascido numa festa de São João que resista!

sábado, 19 de junho de 2010

De volta

Paris me olhou de longe e do alto. Me tocou com intimidade. De suas palavras escutei o sotaque - forte ...particular. É quase isto parir Paris!

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Au revoir

Não sei com que olhos Paris vai me olhar, Não sei com que mãos ela vai me tocar, Je ne sais pas quels mots me dira, Mais je vais , sans le savoir. Au revoir.

Ladainha

Nossa Senhora da Palavra Protetora dos analistas Refúgio dos analisandos Cobre com teu manto Tecido de fios de sons O silêncio que resiste Revela com seus tropeços Tecidos desafinados O estranho que insiste Nossa Senhora da Palavra Mulher de tantas graças Dai-nos o dom de escutá-la Agora e para sempre. Márcia Sartorelo Carneiro.

O homem que lia

Morava na roça, lá pelas bandas do Guiricema, no interior de Minas Gerais. Chamava-se Joaquim. Tinha família: cinco filhos, mulher e sogra; umas galinhas poucas, uns porcos gordos e um milharal de fazer inveja a espantalho: imenso, louros fios de espigas brilhantes. Vidinha singela a cuidar da criação e da plantação enquanto os filhos corriam soltos e sujos pelo quintal, a mulher ocupada com os afazeres da casa, da roupa, da comida, do banho, das fraldas.A sogra pitando seu cigarrinho de palha matutava sentada no degrau da escada que dava vista pra estrada longa e sem fim. Quando vinha a noite esta monotonia mudava. Joaquim tirava de dentro de uma caixa de papelão já gasta pelo manuseio um livro - o único que havia por aquelas bandas. Assentava numa velha cadeira de palhinha puída e perto, as crianças alvoroçadas se amontoavam no chão. D. Neca no fogão esquentando a janta e ouvido esticado. A sogra matutando no degrau. Aí começava a ler as estórias do livro vermelho e dourado. Enquanto lia as crianças encantadas pediam pra repetir tal pedaço, inquiriam –e aí? e depois? e ele fazia uma pausa para respirar ou para dar asas à imaginação. Soltavam gritinhos de medo ou de prazer. Também D Neca no silêncio da cozinha, junto ao estalar da lenha do fogão se emocionava e se orgulhava do marido tão sábio contador de estórias. Aquele livro era mesmo muito bom, dizia, trazia a vida lá de fora, trazia palavras que ninguém conhecia, povoava o lugar com outros personagens, vizinhos, reis, rainhas, ladrões, capitães, madrastas e fantasias mais. E a velha no degrau escutava entretida. Vez ou outra tirava também o livro da caixa. Abria, olhava aqueles rabiscos pretos em fila deitados e não conseguia ver passar a estória que Joaquim tanto contava. E voltava a matutar:- onde Joaquim aprendeu a ver as estórias passarem, a ler como se dizia lá na cidade do Guiricema. Joaquim adivinhando-lhe o pensamento sorria matreiro lembrando do dia em que a única escola rural do lugar havia fechado as portas por falta de professora habilitada. Ele, de uniforme emprestado e chinelo de dedo, não pode assistir ao primeiro e único dia de aula de sua vida. Márcia Sartorelo Carneiro.

domingo, 16 de maio de 2010

Pura poesia

Eu vi! Não era um jaboti, ou tartaruga ou lesma.Nenhum destes bichos que carregam suas casas nas costas. Destes bichos que andam ou nadam pelo mundo arrastando solitariamente sua própria morada. Eu vi como pura poesia! Era um jovem morador de rua, da praça, desta cidade, deste país. Vi com uma estranheza singular - não com indignação pela injustiça deste mundo, nem com revolta pelas desigualdades sociais, nem com indiferença, nem com culpa. Vi como pura poesia! Caminhava pela praça fazendo meu exercício matinal quando vi acordar o morador da praça que havia feito sua cama de papelão debaixo de uma pérgula bordada de flamboyant vermelho. Varria seu território, limpava de copos, garrafas e papéis o lugar. Enquanto isto seu cãozinho, vestido de capa vermelha, pois o frio da noite estava de amargar, latia amarrado a uma árvore. Ao lado da sacola de roupas e de suas latas de água – era lavador de carros - eu vi uma casinha. Mais ou menos quarenta centímetros - madeira pintada de vermelho e branco, dois andares e varandas, cercas baixas para proteger o jardim. Ele fechou suas portas e janelas. Arrastou suas tralhas até a esquina próxima. Enfileirou-as no muro e começou a lavar os carros estacionados na rua. A casinha junto. Agora tinha virado lava jato. Assim passou o dia. À noite, eu vi, o morador de rua, deitado no papelão que lhe esquentava o corpo, abrir janelas e portas de sua casinha, para, adormecido, deixar seus sonhos entrarem. Eu vi como pura poesia! Márcia Sartorelo Carneiro.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Toalhas para enrolar

- Boa tarde D. Mariinha. Quero que a senhora borde neste conjunto de toalhas de banho as iniciais dos nomes da Gertrudes e do Godofredo. - Mas se é só a inicial como vamos diferenciar o G para que cada um saiba o que usar? - Bom, na da Gertrudes você faça um G bem gordinho, bundudo e de pernas grossas e curtas e na do Godofredo faça um G bem magrinho como ele só, cabeça pontiaguda, pernas finas e profundas. - Ta bom Sá Clotilde, a senhora tem cada ideia! Esta conversa aconteceu na cidadezinha de Resplendor onde Sá Clotilde administrava a Pensão São Jorge, junto com seu marido Tião, mais conhecido como Zoião de tanto espreitar os vãos e desvãos da pensão procurando malfeitos e extirpando-os, pois esta era sua função: zelar pela moral e bons costumes do lugar. Sá Clotilde, ao contrário, cuidava era do coração dos hóspedes servindo de cupido, de cúmplice dos amores que se esgueiravam pelos corredores sempre floridos e perfumados.Administrava a pensão como se os hóspedes fossem seus filhos, cada um com seu alimento preferido na hora do almoço, cada um com sua cor preferida de roupa de cama e banho (a de banho sempre bordada com as iniciais dos hóspedes conforme a conversa com D. Mariinha). Era uma delicadeza só com aqueles que permaneciam morando longo tempo na pensão enquanto trabalhavam nas obras da ponte sobre o rio Resplendorzinho. Godofredo era engenheiro da construtora Pontal e Gertrudes arquiteta recém formada, estagiando na empresa.Eles, já fisicamente descritos nos Gs bordados de suas toalhas de banho, ao que se pode acrescentar , a ela, uma pitada de sedução e volúpia, e a ele, o charme e encantamento de um bom proseador e contador de casos,se apaixonaram logo nos primeiros encontros no escritório da construtora e concretizaram a paixão nas camas fofas e cheirosas da pensão São Jorge. Tempo passou, os dois se encontrando furtivamente, tapeando o Zoião e sendo acobertados por D. Clotilde. Bela noite de lua cheia e cheiro doce, Zoião espreitando pelos corredores vê Godofredo, enrolado numa toalha de banho, bater na porta de Gertrudes. Quando esta abre, Zoião dá o bote e pega os dois nus enrolados na toalha de banho.Passa-lhes uma reprimenda, diz que ali é uma pensão familiar, que não tolera imoralidades, que isto não é direito.... Gertrudes, delicadamente, tenta explicar que o acontecido não era nada daquilo que ele estava pensando. - Mas como não? Tá na cara! Os dois pelados...enrolados na toalha de banho...no mesmo quarto... - Olha Tião, diz Godofredo, eu vim aqui no quarto da Gertrudes foi para destrocar as toalhas de banho que a camareira deve ter trocado quando arrumou os quartos. A minha tem um G magrinho e a da Gertrudes um G gordinho bordado. Pode olhar! Depois de conferir o dito, um envergonhado Tião pediu desculpas e saiu ensimesmado dizendo: - essa Clotilde e suas manias! No quarto as toalhas de G bordados atiradas ao chão descobriram corpos plenos de paixão. Márcia Sartorelo Carneiro.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Alice- (quase) no ciberespaço

para Bruno e Júlia Era abril de 2010.Um vulcão na Islândia, chamado Eyjafjallajokull, resolve cuspir as entranhas da terra e, junto às lavas e fumaça, uma personagem de um mundo maravilhoso rola entre o fogo e o gelo do lugar. É Alice. Sacudindo as cinzas que grudavam em seu corpo e tossindo uma fumaça avermelhada se encontra, entre surpresa e assustada, com a Tartaruga Fingida e diz: -Onde estou? Me diga que lugar é este? -Você acaba de chegar num lugar onde as coisas andam muito depressa, quase à velocidade da luz...quase como: você pensou... aconteceu! -Ah! Grossa mentira. Você que é muito lerdinha, então qualquer passo deve ser para você uma maratona, qualquer hora uma eternidade! Enquanto a Tartaruga pensava para responder Alice correu atrás do Coelho Branco (agora cinza depois do acontecido) chegando logo num aeroporto enorme com grandes pássaros voadores pousados enfileirados no chão. -Vamos, quero entrar rápido neles e voar até o outro lado do mundo! diz Alice. -Para onde você quer ir? - Para qualquer lugar. -Impossível ir para qualquer lugar. -Então quero ir para lugar nenhum. -Se não há lugar algum, melhor ir para qualquer lugar. Mas...não foi, não fomos! A Rainha de Copas gritava em altos brados sacudindo o microfone do aeroporto: -Cortem todos os voos! Cortem todos os voos!O céu está negro de cinzas vulcânicas...ninguém pode voar! Cortem todos os voos! Alguém pega na mão de Alice e a leva para próximo dos computadores instalados no aeroporto. É o Chapeleiro Maluco, estudioso da linguagem computacional e tecelão de chapéus, nas horas vagas, para os mouses dos computadores – quase perdendo o ofício agora com os computadores sem fio. Mas afinal, dizia, o chapéu pode-se colocá-lo em qualquer lugar, menos numa mula sem cabeça. Alice está pronta para uma viagem via internet navegando sob as instruções do Chapeleiro quando a luz do aeroporto é cortada por algum fenômeno meteorológico e a luz se apaga. Ou terá sido a Rainha de Copas que ordenou:- cortem as luzes...cortem as luzes!? Fato é que o breu era total.Até mesmo o “olho vivo” do Rei de Copas que vigiava o movimento das pessoas com o pretexto de dar segurança e, que se espalhava pelo aeroporto e pela cidade,parecia agora que piscava ...meio “olho morto”. -Depressa, vamos usar o celular para dar notícia para o Gato Risonho, correu o Chapeleiro.Mas, antes mesmo de discar, o celular pifou. Bateria, disse desolado. Sem comunicação! -Para onde você foi? -Para lugar nenhum. -Impossível ir a lugar nenhum! -Então fiquei no mesmo lugar...só que diferente! E fiquei, e ficamos. Alice então pega um livro e começa a ler, pega uma caneta e começa a escrever, desenha pássaros e voa, costura asas e plaina, borda sorrisos e ama. Esta é a sua viagem! Enquanto isto, a Tartaruga passa fingindo nada saber... Márcia Sartorelo Carneiro.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Irresistível Rosalva

Irresistível Rosalva Hoje acordei dia nascendo claro, peguei minha bicicleta com meus apetrechos de amolar facas, alicates e afins e fui zunindo, apertando a cintura do vento que teimava em levantar a poeira do caminho, rumo ao povoado de Tapipó, na beira do rio Pongó. Cheguei cedo. O sino da igreja chamava para a missa das sete e as carolas se aglomeravam na escadaria do adro. Enquanto isto, o bonitão do Eufrásio, assim era conhecido no lugar, abria a padaria com cheiro de café quente e pão fresquinho, depois de uma noite bem dormida com a dama da noite que morava em seu quintal. Aproximei-me para forrar a barriga que roncava e saber das novidades acontecidas. Foi quando fiquei sabendo pelo Eufrásio que padre Nonato, com sua fama de pastor de ovelhas de Tapipó estava criando o maior desarranjo porque queria botar pra fora da cidade a Rosalva , mulher da vida, como se dizia e também o Sansão, vira lata que gostava de se esfregar nas pernas da beata D. Maroca e não a deixava em paz. Essa vida sexual intensa e desregrada, de Rosalva e Sansão é coisa do diabo, depõe contra a moral e os bons costumes de tão ordeiro povoado, me disse o Eufrásio, repetindo as palavras do padre, não sem antes ajeitar os cabelos e o bigode num espelho velho pendurado na caixa registradora. _ Mas e o povo, o que tá achando disto? _ Tá o maior quiproquó, homem.Vão se reunir na igreja depois da missa das sete pra conversar. Enquanto escutava o bonitão vi passar na frente do bar a Rosalva, vestindo seu melhor decote, seguida pelo professor Anísio com seus óculos e chapéu coco e o Bate-pau, homem de vida desregrada que vivia por conta da bebida e de mulheres acompanhados de perto pelo Sansão que sacudia o rabo e abanava a orelha a cada passada indo em direção à Igreja. Curiosos, Eufrásio e eu, corremos atrás do cortejo. Igreja lotada. Burburinho total. Todos falavam ao mesmo tempo, argumentando, criticando, botando lenha na fogueira, ironizando. Silêncio. Ordem no recinto. O padre ao microfone puxou o terço dos argumentos bíblicos contra a depravação sexual dos acusados exigindo a retirada dos pecadores não arrependidos da cidade. É o diabo, gritava, se juntando às palmas entusiasmadas, gritinhos histéricos das carolas e anuências cínicas dos homens de bem. O professor Anísio pediu a palavra e desfilou eloquência citando desde o Banquete, de Platão até a psicanálise, de Freud para finalmente chegar à declaração dos direitos humanos e aos seus artigos contra qualquer discriminação. É crime, dizia, enquanto era ovacionado pelos cidadãos mais progressistas do povoado. Rosalva olhava assustada sem perder sua altivez enquanto Sansão fazia um xixi aqui outro acolá farejando as pernas de D. Maroca que se retorcia de aflição. E foi quando o Bate-pau pediu a palavra e começou tropegamente a falar, desafiar e desfiar causos libidinosos referentes aos senhores de bem e às carolas, pois disto ele tinha conhecimento, que eu encontrei os olhos de Rosalva já cansada de tanto palavrório. A um sinal meu correu para fora da igreja e na garupa de minha bicicleta seguiu comigo para exercer seu ofício longe dos maus dizeres alheios. Seguindo o rastro da bicicleta Sansão rolava na poeira latindo para as pernas das moças do lugar. Rosalva depois me contou que enquanto o palavrório corria solto ela só pensava em quem aquela noite acolheria seu desejo de mulher. Márcia Sartorelo Carneiro.

sábado, 17 de abril de 2010

Natureza desviante

Uma pomba numa praça, Uma asa arrasta. Sobre duas patas Asa bordada de fita enrolada Faz sua caminhada. O carro desvia Os passantes olham. Carrega determinada Sua asa enfaixada. Perco-a de vista, Para encontrá-la mais adiante Caminhante, Sua condição agora andante, Sua natureza desviante. Pomba humanizada, Por uma fita colante. Chocante! Não voa mais.

domingo, 11 de abril de 2010

É isso aí!!

Descobrir... descobrir... até encontrar nada e começar a inventar.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Ovos e pepino

Era feriado destes prolongados.Bh vazia, todos viajaram. Da minha janela não via vivalma. Resolvo ir ao supermercado comprar um vinho e um salmão para o almoço. Encontro um pequeno congestionamento na entrada...penso que pode ter acontecido algum problema nos computadores que marcam hora de chegada e placa do carro. Entro. Descubro que todos os que viajavam e também os que ficaram resolveram se encontrar no supermercado. Lotado!. Carrinhos cheios, crianças, bebês, famílias inteiras com ovos de Páscoa, caixas de bombons, bacalhau e batatas. E filas...enormes . Faço minhas compras não sem antes pensar em desistir. Só de ver fila a gente já começa a ficar com pressa, mesmo não tendo nada pra fazer.Dá uma gastura, uma aflição de chegar logo pra fazer nada! Pensando assim entro na fila mais longa, puxo uma conversa aqui, outra ali, observo.Na minha frente uma moça de uns 30 anos parece ter feito as compras do mês- carrinho cheio mas sem nada que lembrasse o feriado de Páscoa.Atrás uma mãe. No carrinho, um bebê misturado aos ovos, chips e refrigerante se distrai chupando um pirulito. Nada de muito interessante. .Mas quando a moça da frente começa a colocar os produtos na esteira rolante do caixa percebo que ela segura na mão esquerda um pepino. Com a direita tira as compras do carrinho e as coloca na esteira. Com a esquerda segura o pepino. Olho...olho de novo curiosa pensando que uma hora ela vai se dar conta da inutilidade do gesto, de que se ela colocasse o pepino na esteira seu procedimento seria mais rápido.Mas ela nada....segura o pepino em riste , como uma espada a defendê-la do monstro dos ovos de Páscoa que cercava o supermercado. Quase no fim ela percebe a inutilidade do gesto, sorri e deposita o pepino na esteira. Enquanto isto um debocha: -ah, essa daí deve segurar tanto pepino no trabalho ou na família que nem num dia de pouco stress ela larga o pepino...ninguém merece! E outra mais maliciosa cochicha: -ah como faz diferença um pepino erguido num dia de feriado...dá uma inspiração! Sorrimos. Corro pra escrever. Márcia Sartorelo Carneiro

sexta-feira, 2 de abril de 2010

sobre uma porta

Sobre o rio...a ponte. Madeira fina de tacos gigantes. Sobre a ponte...a porta! Assim pregada, hirta, singela. Azul... Márcia Sartorelo Carneiro , Serra do Cipó, julho de 1977.

Robô

Aquela parte do seu corpo se mostrava despida de carne. Parafusos, porcas ,arruelas e molas saíam-lhe pelo corpo como se sentissem atraídas por algum imã ou como se quisessem pertencer àquela dobradiça ou fechadura. Andava pela rua com sua cadência habitual...olhava como se na sua frente se abrisse o vazio. Parou. Tinha alguma coisa de errado com ele... afinal, toda aquela ferragem lhe saindo do corpo, não era humano. Estava em frente a um ferreiro, que, depois de observá-lo, perguntou: -O que o senhor deseja? Seu corpo tremeu fazendo um barulho enorme... o óleo começou a escorrer-lhe pela cara...as molas do coração se esticavam e contraíam rapidamente. E de repente ele falou: -Pane...pane...não tenho registro ...não tenho programação...não conheço esta palavra...desejo...pane ...pane! E estourou. Márcia Sartorelo Carneiro em 23/01/1977

domingo, 28 de março de 2010

Maritaca (para Glaura) Maritaca Asa cortada Encontrada Coitada! Maritaca Asa cortada Cuidada Bem aventurada! Maritaca Asa enfeitada Libertada Estrada! Maritaca Asa curada Barulhada Passarada! Márcia Sartorelo Carneiro

domingo, 21 de março de 2010

Barrados no baile Era um jovem cinquentão , charmoso,educado,inteligente.Tinha descendência árabe, a qual, junto com um estilo hippie anos setenta, lhe dava um ar de muçulmano fundamentalista. Magro, estatura mediana,barba rala por fazer,traços fortes e sorriso franco. Físico,educador e escritor estava entre os mais sofisticados intelectuais mineiros, também dançava um forró arretado e curtia boa música.Assim era meu amigo Rafael, o Rafa. Sofisticado na sua simplicidade, vestia camiseta rosa bebê só pra agradar a namorada- sem preconceitos! E olha que nem atleticano era pois o fato ocorreu antes do clube lançar aquela camisa rosa e preta em 2010. Foi na comemoração de mais um dos meus janeiros que convidei o Rafa e sua namorada para dançar no Clube Fantasy, casa noturna de Bh. A propaganda do site dizia receber a população mais elegante da noite belorizontina e exigia traje esporte fino dos frequentadores. No dia combinado, ainda no carro me dirigindo ao local para encontrar os amigos , o telefone toca. È o Rafa dizendo que foi o primeiro a chegar mas o segurança não o deixava entrar por estar vestido inadequadamente. -Mas como você está vestido? _De bermuda e sandália! Chego ao local e nos encontramos. A Lia toda linda de vestido de festa e salto alto e o Rafa Com sua bermuda e sandália de couro.Negocia pra lá...negocia pra cá....ele olha pro segurança e pensa que sua bermuda custou mais caro que o terno de tergal barato do cara...alguém quer arranjar uma calça e sapato emprestados...o Rafa calça 44....impossível! Frustrados nos despedimos na porta do Fantasy submissos às regras da casa . O Rafa e a Lia foram pra casa e dançaram a noite inteira ao som do Dussek- barrados no baile...isto é que dá querer frequentar!!! Só que lá não precisavam mais de roupa...de nenhuma roupa! Dias depois encontrei o Rafa. Me contou que também foi barrado no Itaú personalité! Também com aquela cara de fundamentalista ninguém podia acreditar que tinha fundos no banco. E como tinha! Vestia a mesma bermuda com a camisa rosa bebê...acharam que era disfarce de algum terrorista! Márcia Sartorelo Carneiro.

segunda-feira, 15 de março de 2010

24 horas sem luz Havia sofrido uma ruptura do ligamento anterior cruzado e contusão óssea da tíbia no joelho direito. Puro delírio de atleta da (quase) terceira idade e com breve carreira futebolística...jogava futebol no gramado do sítio com meu sobrinho quando pisei na bola , torci a perna e gemi de dor. Só escutei o Bruno gritar: papai!!! e caída no gramado ,pela expressão do rosto de meu irmão fisioterapeuta , percebi que a coisa não era boa. Mas isto é só pra introduzir o acontecimento que quero deixar registrado aqui. Estava já há uns 10 dias sem dirigir, indo à fisioterapia de táxi, quando numa segunda feira resolvo descer na garagem do prédio onde moro pra ligar o carro ...aquela história de evitar que a bateria descarregasse. Pego o elevador com aquela roupinha de ficar em casa , meio velha ,meio suja, a chave do carro , a da casa ,o celular e a bengala que me acompanhava .Ligo o carro ...experimento dirigir pra frente e pra trás..até parecia que os ligamentos rompidos eram do carro..a contusão óssea então parecia que a lataria tava imprestável. Mas depois de feito o serviço , e certa de que dirigir não seria grande problema, tomei o caminho de volta pro elevador. Estava próximo quando ouvi um estrondo que logo identifiquei como problema no transformador que alimenta a energia elétrica do prédio. Junto com o barulho senti uma gota de chuva que assustada com o barulho resolveu despencar com toda a força que anima a natureza. Ainda bem que não estava no elevador , pensei eu, ficaria presa lá .Subi então um lance de escada que me levaria até a portaria do prédio. Quero lembrar que havia, neste mesmo dia, na fisioterapia, treinado subir escadas com movimentos paralelos pra não comprometer o joelho .... fiz então mais um treino agora sozinha.....vitória!!! minto ...eu e minha bengala. Chegada à portaria , porteiro e faxineiros me olham espantados... D. Márcia aqui em baixo com uma chuva destas...Dadas as devidas explicações assento-me no sofá da portaria pra esperar a luz voltar. Muitos moradores começam a voltar pra casa e passando por lá param pra conversar , perguntar sobre o ocorrido comigo , com a luz, dar notícia da chuva pela cidade... vejo chegar então o síndico , senhor de seus 80 anos , com problemas no coração , válvula acho eu, e com uma surdez característica do idoso . Seu Anisio chega manso, assenta perto de mim, conversa do estouro , da Cemig, da chuva. O Bira também desce do apartamento onde faz serviço de pintor e assentar azulejo pq sem luz não pode cortar a cerâmica . Fica ali por pura solidariedade. Conta que também tem o LCA rompido há 25 anos num jogo de futebol. Fico contente pq a falta não compromete tanto sua vida. Quer me ajudar a subir as escadarias pq a luz não vai voltar tão cedo...esqueci de dizer que moro no 13 andar... quase 200 degraus acima...e contundida!! A senhora do segundo andar chega da rua e começa uma conversa comprida comigo e com seu Anisio que sem escutar bem o que ela diz teima em repetir a cada pausa dela que houve um estouro no transformador, a chuva caiu , o porteiro já avisou a Cemig , o protocolo já está anotado...ela fala da cama coreana que experimentou na loja...uma delícia de relaxamento... de Ponte nova... do deputado fulano de tal que é de lá e tem influência na Cemig... e ele diz que o porteiro já ligou pra cemig... Chega nesta hora o filho do síndico , trazido pelo Escolar da escola onde estuda.. tem síndrome de Down, pode muito bem subir até o 15 onde mora e a mãe espera, mas o pai o retém e assentam os dois num banquinho um pouco afastados da dona da conversa comprida... E as pessoas vão passando , chegando ou saindo, umas subindo imediatamente as escadas para suas casas, outras parando pra conversar , saber pq da bengala, se a Cemig já foi avisada... Chega também pra ficar o Sérvulo, também idoso e um pouco obeso e se abanca no sofá do lado do Bira. Mora no 17 e não tendo opção resolve esperar a luz chegar mas junto resolve ganir toda indignação contra a Cemig desde o mas réles funcionário até o presidente , passando é claro pelo governador , prefeito, deputados.....que não dão conta do transformador estourado ...toda chuva é a mesma coisa ...todo lugar tem luz ...só falta aqui no prédio.... culpa do presidente ...parece perseguição contra nós... Meu celular toca . è minha filha que não me encontrando em casa pensa onde anda essa louca da minha mãe.. com uma chuva destas....Esclarecida a situação ela diz que está indo pro plantão mas vai passar na padaria e comprar um lanche pq não se sabe a hora que a luz vai voltar. Digo pra reforçar o lanche pq a portaria ta cheia de gente ... Somos quatro portadores de necessidades especiais... um surdo , um com síndrome de Down, uma de bengala e um obeso... mais o porteiro e o Bira sem necessidades especiais aparentes..Desculpem a brincadeira mas, é preciso transformar a dor em riso estourado! Chega o bolo, o pão de queijo, o chocolate e nos deliciamos ali assentados . Só o Sérvulo não aceitou a merenda ...acho que resolveu fazer dieta justo naquela hora! Devido ao adiantado da hora e de barriga cheia percebo que cada um já começa a olhar o melhor pedaço do sofá pra passar a noite... vai ser guerra!!! O porteiro está contente pois vai ter companhia ...Meu celular toca ... é meu irmão que avisado do ocorrido pela minha filha vem me buscar pra dormir na sua casa... pode deixar ...eu espero um pouco mais...ta divertido...o porteiro não quer que eu vá...diz que eu to distraindo eles ...assim o tempo passa melhor... meu joelho ta quase bom...Não tem jeito . Sou resgatada e levada assim mesmo pra dormir na cama quentinha. O Bira resolve ir embora pra casa dele. Os três ficam tristes pq to indo. também alegres pq ganham espaço no sofá. O porteiro agora triste diz que quando faltar luz de novo manda me chamar pra passar o tempo...Digo que eles deveriam ir pro hotel passar a noite lá... . e me vou. Só voltei 24 horas depois quando o porteiro me avisou que a Cemig enfim resolveu o problema que acometeu 200000 residências naquela noite. Vim pensando o que teria acontecido com meus três companheiros de infortúnio.Fiquei sabendo que lá pra meia noite, depois dos apelos das esposas para irem pro hotel resolveram empreender a longa subida escadaria acima , iluminados por um casal solidário que os acompanhou durante 2 horas na empreitada com direito a muitas paradas para descanso. Passados alguns dias ....ainda não encontrei o Sérvulo....Seu Anísio caminha seus passos lentos todo dia na pracinha já recuperado ... eu atrás dele e sem bengala. Márcia Sartorelo Carneiro.

segunda-feira, 8 de março de 2010

A menina e seu desejo Era manhã de junho.Aquele friozinho gostoso, céu azul limpo, sol despertando lento. Caminhava no parque observando árvores , flores, bichos, gente, meus movimentos corporais, respiração, suor, vento no rosto, cheiro de aposentadoria – prazer. Passo depois no Palácio das Artes para comprar ingressos da ópera de domingo próximo. No foyer a orquestra está afinando seus instrumentos e crianças, muitas, afinam suas emoções, aflições, expectativas com seus respectivos lugares....cadeiras enfileiradas, professoras pedindo silêncio, fazendo psiu, amarrando a cara, trocando de lugar, mandando assentar. Assento. A orquestra começa a tocar uma ária de Bizet. Crianças silenciam, rostos iluminados, ouvidos atentos, sorrisos furtivos. Também celulares pululam das bolsas querendo participar da orquestra....um desastre essa tecnologia. Palmas entusiasmadas, gritinhos em meio ao psiu das professoras. O maestro apresenta os instrumentos. Cordas – violinos, violas, violoncelos e baixos.De agudos a graves os sons imitam as cantigas de roda infância. Algumas crianças ainda reconhecem o “atirei o pau no gato” há muito esquecido , ou talvez ameaçado pela sociedade protetora dos animais.A harpa toca também. Myriam, minha amiga e seu delicado som angelical. Depois vêm os metais, as madeiras ( aquelas que são feitas de metal mas é um pequeno pedaço de madeira que define o som), e , por fim, a percussão- aquele som primitivo que mexe com nossas entranhas. E mais orquestra, maestro , Carmem, Bizet e orquestra. O maestro conversa, explica ( é um concerto didático) e de repente uma criança o interroga. Quer saber se pode ver os instrumentos de percussão de perto ( eles ficam no fundo da orquestra). O maestro diz que ao final as professoras os organizam para vê-los. A criança pergunta então se pode tocar os instrumentos. Ele delicadamente responde que não pois os instrumentos desafinam facilmente, são sensíveis. Ela então diz que quer reger a orquestra. Isto pode? Ele lhe oferece a batuta e ela ,com seu desejo decidido, se coloca diante da orquestra , levanta os braços e com a elegância de um toreador faz contornos sonoros ao redor de seu desejo. A orquestra acompanha. Ao final, vou abraçar minha amiga harpista. Conversamos. Saio do Palácio das Artes e as lágrimas me encontram distraída pensando naquela menina (e seu desejo) Brava! Bravíssima!!! Márcia Sartorelo Carneiro.